Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 2, p. 86-100
Culto em ação
de graças pela vida e testemunho de Dom Hélder
Câmara
Capela da EST,
28/11/99, 20.00 h1
Saudação
Canto: Dizei aos cativos: “Saí!” (O povo canta, p. 92s.)
Intróito
Estamos
aqui para louvar a Deus,
que se comunica conosco de seu jeito;
que
lança mão de pessoas-testemunhas;
que faz com que
tais pessoas-testemunhas nos encontrem.
Queremos agradecer a Deus
por “sua filantropia” (cf. Tt 3.4),
por sua
graça de nos dar pais e mães na fé e na prática
da fé,
por vida e testemunho do seu e nosso Hélder
Câmara.
Estamos felizes e
alegres por experienciar, nos dias que correm,
que “o
Espírito da Verdade (...) não nos deixa órfãos
e órfãs” (Jo 14.17s);
que toma palavra humana
e chama para tal semelhantes nossos;
que o realiza de modo tão
humano e convincente,
tão insistente e contagiante
como
sucedeu através do seu e nosso Hélder Câmara.
A Deus, “poderoso”
no amor, “para realizar por nós em tudo
infinitamente
além do que pedimos ou pensamos,
a ele
seja a glória na Igreja e em Cristo Jesus,
por todas as
gerações dos séculos dos séculos!
Amém”
(Ef 3.20s).
Nota biográfica
Nasceu menino pobre aos sete de fevereiro de 1909, em Fortaleza, Ceará. Seu pai foi João Câmara Filho (guarda-livros) e sua mãe, Adelaide Pessoa Câmara (professora primária). Seus irmãos são treze, mas apenas sete conseguem sobreviver, pois os outros seis morrem de epidemia. O pequeno Hélder foi criado num ambiente familiar de muito respeito e simplicidade e teve uma condição social média.
A mãe chamava-o de José, mas seu nome de batismo ficou Hélder para atender os desejos do pai, que quis dar ao menino o nome de um posto holandês. O batismo aconteceu no dia 31 de março de 1909, na capela da Santa Casa de Misericórdia. O oficiante foi o Monsenhor José Menescal. Os padrinhos foram Diva Pamplona (irmã de João) e o vice-presidente do Estado, Maurício Gracho Cardoso. Aos oito anos (1917), faz a primeira Eucaristia e, aos 14 anos (1923), ingressa no Seminário Diocesano de Fortaleza. Sobre esse momento de sua vida, Dom Hélder guardou as seguintes palavras de seu pai, que, embora não sendo muito ligado à religião, falou-lhe: “Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar.” Aos 27 anos (1936), já padre, Hélder transfere-se para o Rio de Janeiro e, aos 43 anos (1952), é eleito e consagrado bispo, mas é somente em 1955 que ele é promovido a Arcebispo de São Luiz do Maranhão. Escolheu como lema episcopal: In manus tuas (nas tuas mãos), para indicar que sua vida e caminhada estariam entregues nas mãos de Deus.
Aos 55 anos (1964), Dom Hélder Câmara é nomeado Arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife. Frase do próprio Hélder: “O Ceará me preparou para o Rio e o Rio me preparou para o Recife”.
A chegada de Dom Hélder a Recife coincide com o golpe militar de 1964. Por discordar, acabou se transformando no “arcebispo esquerdista”. Para os pobres do massacrado Nordeste brasileiro, Dom Hélder foi o “bispo dos favelados”, o “bispo despojado” entregue nas mãos de Deus. Ele dizia: “Gostaria de ser uma simples poça d’água para refletir o céu”. Foi homem de muita oração e visão profética, que estava sempre aberto às mais diferentes necessidades. “A voz dos que não tinham voz”.
Dom
Hélder foi dedicado às coisas práticas da vida.
Porém, não deveríamos ver isso por um lado
puramente material, e, sim, no sentido evangélico do amor ao
próximo e do amor a Deus através do próximo,
pois ele foi profundamente mergulhado numa espiritualidade de alguém
que se doa, que não se pertence e que não tem o direito
de ser egoísta. Sobre Dom Hélder Marcelo Barros
escreveu o seguinte: “Ele, que nunca reteve para si o poder,
viveu os seus últimos anos e morreu como o pobre que sempre
quis ser.”
(Nicolau Paiva)
Leitura do Antigo Testamento
Dom Hélder Câmara experimentou muito o peso do ser cristão: foi caluniado como poucos, os detentores do poder determinaram que os meios de comunicação social silenciassem a seu respeito, mandaram atentar contra sua moradia e agredi-lo de forma terrível, seqüestrando, torturando e matando colaboradores seus; e, por fim, nomeou-se como seu sucessor uma pessoa tão diferente dele em tudo. Pouco Hélder Câmara se lamentava, menos ainda falava de si próprio. Não sabemos se se queixava junto ao Pai, como costumava chamar Deus. Mas poderia ter se expressado como Jó. Ouvimos versículos selecionados de Jó 29 a 31: 29.11-13, 15-17; 31.29s; 30.1a+b,9-17,27-28a,20-23.
Canto: Salmo 118 (Celebrações do povo de Deus, p. 119-121)
Leitura do Novo Testamento: Mt 5.3-11 (em versão nordestina)
Canto: Procurando a liberdade, caminheiro (O povo canta, p. 56)
Textos do Dom
Com 19 anos, Hélder Câmara formulou, sob o título “Aula de Sabedoria”, os seguintes versos:
A
filhinha do presidente da superempresa
cobriu de rabiscos
as
páginas dos livros
nos quais personagens de peso
estudaram
investimentos,
que teriam rendido bilhões,
acabando
assim com o resto de paz
do
ganancioso diretor.2
Já em idade madura e bastante curtido na vida, escreveu este epigrama:
Suporta
que a pá do arado te rasgue,
quando rasgar profundos
sulcos
para a sementeira.
Se não o
aceitares,
permanecerás estéril
como
o coração do ser humano.3
“A América Latina é a parte cristã do mundo subdesenvolvido. Por isso, temos uma responsabilidade dobrada: em relação a nossos irmãos cristãos dos países da opulência, o amor ao próximo nos coloca a tarefa de arrancá-los do egoísmo, do materialismo prático, do perigo de se tornarem um escândalo para nossos irmãos não-cristãos, de lhes dar uma idéia totalmente falsa de Cristo e sua doutrina. E aqui na América Latina nos cabe experimentar uma nova dimensão de desenvolvimento humano, um caminho para libertar-nos da miséria sub-humana, sem cair na desumanidade do superconforto e do superluxo. Temos que aprender e ensinar que abundância de bens não é sinônimo de excesso de bens.”4
“Se Deus me desse a graça de nascer cem vezes, e de cem vezes reviver a vida que Ele me confiou, cem vezes eu Lhe agradeceria por me ter permitido ser padre. Um padre não existe no vazio: ele existe para servir aos homens e para proclamar a glória de Deus.”5
“É bom que ninguém se iluda, ninguém aja de maneira ingênua: quem escuta a voz de Deus e faz sua opção interior e arranca-se e parte para lutar pacificamente por um mundo mais justo e mais humano, não pense que vai encontrar caminho fácil, pétalas de rosas debaixo dos pés, multidões à escuta, aplausos por toda a parte e, permanentemente, como proteção decisiva, a Mão de Deus. Quem se arranca de si mesmo e parte como peregrino da justiça e da paz, prepare-se para enfrentar desertos.”6
Depoimento de Germano G. Streese
Em 1982, eu estava cursando a Faculdade de Teologia. Vivíamos os anos de fim da ditadura militar. Uma efervescência de novas possibilidades na vida eclesial e na sociedade civil. Nas igrejas, a gente vivia um tempo de buscas. Como estudante procurava por experiências pastorais que pudessem me auxiliar no desenvolvimento de um modelo de trabalho pastoral.
Desde que entrei na Faculdade, em 1979, muito se falava de uma prática de igreja muito interessante que se realizava no Nordeste brasileiro. Líamos muito sobre isto. Chegou a época de pensar o estágio. Optei por realizá-lo no Recife, para ver in loco esta nova experiência de igreja. Morei em uma comunidade nos arredores de Recife, na cidade do Cabo.
Os encontros com D. Hélder foram vários. Mas um guardo em minha memória. Num domingo, houve uma festa religiosa. O pároco local estava envolvido na celebração. D. Hélder havia aceito o convite para participar da missa festiva. Alguém precisava buscá-lo em Recife. Fui a pessoa encarregada. Ao volante de um fusquinha, fui a Recife. Cheguei à sua residência. Ele me esperava. Embarcamos e nos dirigimos ao Cabo. Conversamos a viagem inteira.
Quando chegamos à cidade, as ruas estavam todas bloqueadas. Não poderíamos entrar de carro. Quem conhece o Cabo sabe que as ruas são estreitas e ficam apinhadas de gente em dia de festa.
Pensei: como é que vou chegar até a igreja? O pessoal está esperando D. Hélder! Com seu jeito manso, mas decidido, ele falou: “Vamos caminhar. Vamos junto com o povo”. Eu fiquei meio assim, mas acatei a sua sugestão. Descemos do carro e começamos a caminhar. Quando as pessoas perceberam que era D. Hélder quem estava caminhando com elas, ficaram muito alegres. Uma multidão nos cercou. Queriam estar junto dele. E ele pacientemente não se importava com os mais afoitos que queriam tocá-lo. Um trajeto de 10 minutos, levamos quase 1 hora para fazer.
O que quero dizer com isto é: D. Hélder foi uma pessoa humilde. Nunca deixou de ser uma pessoa identificada com o povo a quem pastoreava. Sua conduta de vida, sua maneira de motivar as pessoas que com ele trabalhavam marcaram todas as pessoas.
Por isso, é que hoje nós estamos usando nossas vestes talares. Não estamos aqui somente como pessoas celebrando este culto. Mas como pastores. A vida e o modelo de ser igreja que D. Hélder procurou desenvolver em seu trabalho pastoral marcou-nos a todos. Por isto, estamos aqui como pastores celebrando este culto. O uso do talar também é uma homenagem a esta pessoa que soube, dentro de sua tradição religiosa, viver evangelicamente a radicalidade do evangelho de Jesus Cristo.
Canto: Jesus, Pastor amado! (Hinos do povo de Deus, nº 117)
Textos do Dom
“Se Deus me desse a graça de nascer cem vezes, e de cem vezes reviver a vida que Ele me confiou, cem vezes eu Lhe agradeceria por me ter permitido ser padre. Um padre não existe no vazio: ele existe para servir aos homens e para proclamar a glória de Deus.”7
“Durante o Concílio [Concílio Vaticano II, 1962-5], acreditei ter compreendido bem o que era realmente a Igreja dos pobres. Depois dele, quando as circunstâncias me fizeram perder a palavra, a reputação, e até quase meu próprio nome, foi que percebi ser a pobreza uma coisa bem distinta de uma cruz de madeira ou de uma casinha modesta. Jamais chegamos a nos converter completamente ao Cristo que está presente entre os pobres, ou a compreender o que São João Crisóstomo quis dizer quando escreveu esta frase: ‘Os pobres são nossos mestres’.”8
“Não devemos temer a utopia. Gosto de repetir (...) que, ao sonharmos sozinhos, limitamo-nos ao sonho. Quando sonhamos em grupo, alcançamos imediatamente a realidade. A utopia compartilhada com milhares é o esteio da História.
Também não devemos ter medo de ser apenas uma gota d’água. É a reunião das gotas que põe em movimento os riachos, os rios, os oceanos, e temos que levar em conta o fato de que as nascentes não reúnem um grande número delas.
Não devemos temer por nossa impotência diante da força todo-poderosa dos capitães de indústria, dos financistas e dos governos. Eles passam, e os povos ficam; um dia se darão conta de que não podem ignorar o que verdadeiramente interessa a estes. É óbvio que não poderemos esperar tanto nos regimes ditatoriais, o que vale dizer da necessidade de lutar sempre contra as ditaduras para acelerar a marcha das idéias.
Não devemos ter medo de passar por ingênuos diante dos sábios e dos especialistas. O que são eles senão ingênuos que se dedicaram ao estudo e à pesquisa? Foi o que lhes permitiu elaborar e propor teorias. Mas convém refletir que não é indispensável formular teorias para conceber e praticar a justiça e a solidariedade. Em Lech Walesa ou Madre Teresa, os ingênuos do mundo inteiro encontrarão modelos de audácia inventiva, generosa e descomplexada.”9
“Há muito tempo percebi que a contradição ajuda mais que o elogio. Ela encoraja a humildade, sem a qual não se dá um passo no caminho traçado por Nosso Senhor. Precisamos entender a contradição como uma vacina contra o orgulho. Temos que aceitar a calúnia – e principalmente a calúnia à qual não possamos responder - como uma das maneiras de que o Senhor lança mão para nos estimular a ir mais longe e mais fundo nessa busca da pobreza.
Na humildade e na pobreza, só nos restará colocarmo-nos à disposição do Senhor para que, com a inteligência, a sabedoria, a força, a prudência que Ele nos transmitiu com Seu Espírito, Ele convença nossos contraditores de seus próprios equívocos e faça com que se calem nossos caluniadores. Como todos vocês bem sabem, o Senhor é sempre capaz das mais surpreendentes maravilhas!”10
Nasça
da ação
e da meditação.
Sem ação
ou
tendência à ação
ela será apenas
teoria
que está levando os jovens
ao desespero.
Se
ela é apenas ação
sem meditação
ela
acabará no ativismo
sem fundamento,
sem conteúdo,
sem
força...
Presta honras ao Verbo
eterno
servindo-te da palavra
de forma
a recriar o mundo.11
Arranca-me Senhor
Dos
falsos centros.
Livra-me, sobretudo,
de colocar em mim
mesmo
meu próprio centro...
Como não
compreender,
uma vez por todas,
que fora de Ti
tudo e
todos
somos excêntricos?12
Depoimento de Albérico Baeske
Este foi o meu primeiro contato pessoal com Hélder Câmara: eu devia marcar entrevista com ele para um cooperador da Federação Luterana Mundial, que já o tinha convidado a palestrar no Encontro de Jovens, previsto em conexão com a sua V Assembléia Geral, em 1970. Mal quatro meses no Recife, eu pretendia apenas solicitar à secretária a tal entrevista. Ao entrar no Palácio dos Manguinhos, “o palácio episcopal”, encontrei-o repleto de pessoas que conversavam em pequenos círculos. Fiquei deslocado, até que uma senhora (a secretária), perguntou-me o que desejava e me orientou a esperar e, entrementes, juntar-me ao povo. Pouco demorou e Dom Hélder, surgindo dentre os presentes, dirigiu-se diretamente a mim com os braços estendidos, radiante e, abraçando-me, perguntou: “Sabe onde moro? Apareça lá em casa e a gente conversa com mais calma”. E, abraçando-me novamente, despediu-me. E eu saí, tonto – que homem, que bispo... Hoje, lembrando que isso aconteceu num tempo tão sombrio, fico comovido: que liberdade o Dom mostrou perante uma pessoa que nunca tinha visto, que confiança ele comprovou naquele que costumava chamar de Pai!
Quando a sua moradia nos fundos da Igreja das Fronteiras foi metralhada, recebemos, também Sibyla e eu, a notícia. Foi de madrugada. Fomos, logo em seguida, assistir à missa que Dom Hélder costumava celebrar todos os dias às 6.00 h. Juntamo-nos a mais ou menos 70 pessoas ali presentes. Ele não mencionou o acontecido, atendo-se rigorosamente ao rito da missa conforme o Missal Romano. Encerrou assim: “Que Deus todo-poderoso / torne os vossos corações atentos à sua palavra, / a fim de que transbordeis de alegria divina” (grifo meu). E, após a bênção final, aceitou os abraços de afeto e de solidariedade das pessoas, aos quais respondeu com um sorriso, afável e expressivo – como sempre.
Depoimento de Roberto Zwetsch
D. Hélder, profeta do deserto
Sempre é uma temeridade falar sobre pessoas já ausentes do nosso meio. Ou se desfaz sua biografia com críticas que ela mesma não pode mais rebater, ou se a eleva às alturas como se fosse super-humana, alguém extraordinariamente dotado.
Ao prestarmos justa homenagem a D. Hélder Câmara, aqui na Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), aqui em São Leopoldo (RS), em culto realizado na capela da Escola, no dia 28 de novembro de 1999, nossa motivação é outra. Queremos destacar o significado da vida e do testemunho desse homem e Deus na causa do evangelho de Jesus Cristo em nosso país. D. Hélder foi um arauto em tempos difíceis. Soube como poucos que alcançaram a alta hierarquia da Igreja guardar uma profunda coerência entre o discurso e prática de vida. Por isso mesmo, sofreu seguidas críticas, perseguição, atentados, marginalização entre os seus pares. Não tergiversou. Seguiu firme até o fim da vida o rumo que se havia proposto. Condescendeu por vezes, mas sem submissão ou casuísmo. Fazia parte de sua personalidade, profundamente marcada peta adesão ao credo de Ghandi, de Luther King Jr. e outros lutadores da justiça que optaram peta não-violência como método de luta e de ação.
Eu o conheci em minha primeira viagem ao Recife (PE), nos idos de 1973. Respirávamos o ar rarefeito da ditadura militar (1964 1985). A Igreja Católica Romana de Olinda e Recife, da qual D. Hélder era Arcebispo, tornou-se muito conhecida no país por sua firme posição crítica diante do regime ditatorial. Muitos de seus membros mais engajados nas lutas sociais haviam sido perseguidos. Alguns foram presos e até mortos, entre os quais, o Pe. Henrique, da Pastoral Universitária, cujo assassinato o feriu diretamente. O próprio Dom, como era carinhosamente conhecido, sofreu violento atentado com tiros de metralhadora na casa onde morava ao lado da Igrejinha das Fronteiras. Felizmente, nada de mal lhe aconteceu. Ainda assim, D. Hélder não arredou pé de suas posições em defesa das pessoas injustiçadas e por paz com justiça no âmbito sócio-político e econômico. Para ele, o desenvolvimento era o novo nome da paz no pobre e miserável Nordeste do Brasil.
Em 1974, realizei um intercâmbio de estudos que me permitiu viver um ano no Recife. Naquela oportunidade, pude ter encontros mais freqüentes com D. Hélder, uma vez que estudei no antigo Instituto de Teologia do Recife ITER (hoje extinto), do qual. ele era reitor, além de ter morado com um dos assessores de D. Hélder, o Padre Reginaldo Veloso.
Neste memorial, quero destacar duas contribuições que D. Hélder nos deixou e cujas ressonâncias ainda se fazem sentir entre nós. Primeiro, ele apoiou decididamente a inserção da igreja e de suas pastorais nos meios populares. As famosas CEBs tiveram, no Recife e nas cidades vizinhas, um dos centros mais dinâmicos nos anos 70. Conheci, em 1974, o programa de evangelização "Encontro de Irmãos”, que mobilizava centenas de grupos por toda a periferia de Recife e Olinda, a partir dos encontros nas casas e por ruas. O projeto tinha como elo de ligação um programa de rádio com o mesmo nome, transmitido – se bem me lembro – aos sábados pela manhã, e preparado por uma equipe da própria Arquidiocese. Era bem popular, com músicas novas que vinham surgindo desse novo trabalho de base da igreja e com uma audiência inédita em termos de programa religioso com esta perspectiva popular13.
Fundamentalmente, o encontro de irmãos reunia pessoas da vizinhança, estudava a Bíblia e procurava, à luz do testemunho evangélico, refletir sobre a vida e os desafios de como transformá-la. A idéia era mobilizar o povo das periferias para um maior engajamento na luta por melhores condições de vida, saúde, educação e assim por diante. E isto como movimento eclesial alicerçado numa nova compreensão da palavra de Deus. Foi uma grande novidade na época: o povo católico-romano descobriu a Bíblia como aliada de suas lutas sociais. Pois bem, este programa teve como primeiro apoiador D. Hélder Câmara. E suas falas cotidianas pelo rádio eram como um bálsamo para a gente sofrida do Nordeste. Aliás, o Dom era um pregador excelente. Sua retórica, aliada a uma brilhante gesticulação por todos conhecida, fazia com que aquele pequeno nordestino crescesse em estatura à medida que falava. Isto se pôde constatar em inúmeros foros internacionais para os quais o Dom foi convidado a levar sua mensagem.
Uma segunda contribuição foi sua coerência como seguidor de Jesus. D. Hélder foi a vida inteira um fiel seguidor da doutrina de Roma. Mas não o fez cegamente. A partir de sua compreensão do evangelho de Jesus, fez muitas propostas ao Vaticano que costumava não vê-lo com bons olhos. Uma delas, que lembro ter ouvido de viva voz, era bastante radical, pois implicava em que a Sé romana abrisse mão de sua condição especial de um Estado político-religioso.
D. Hélder sugeriu três atitudes que, se colocadas em prática, teriam uma repercussão internacional e em toda a ecumene cristã. Ele disse ter feito tal sugestão ao próprio Papa Paulo VI. Tratava-se do seguinte: 1º) fechar o banco do Vaticano; 2º) doar à Unesco todo o acervo artístico e cultural do Vaticano; 3º) que o Papa deixasse o Vaticano e fosse morar na periferia de Roma numa moradia digna, mas que o fizesse estar mais perto do povo.
Coisas de profeta. Evidentemente, nenhuma dessas sugestões foi aceita. Mas o próprio Dom fez a sua pequena revolução no status eclesiástico, ao sair do Palácio Episcopal e ir morar numa casa ao lado da sacristia da Igrejinha das Fronteiras.
Ali viveu modestamente até sua morte.
Esta é uma pequena página de como vejo aquele pequeno grande homem. É dele a expressão: “o deserto é fértil”, título de um de seus muitos livros publicados. Dom Hélder foi um profeta, principalmente nos tempos em que a omissão foi a atitude geral entre personalidades eclesiásticas de todos os matizes.
Encerro com um poema que dá bem a medida de seu pensamento:
Não, não
pares.
É graça divina
começar bem.
Graça
maior,
persistir na caminhada certa
manter o ritmo...
Mas a
graça das graças
é não
desistir.
Podendo ou não podendo,
caindo. Embora, aos
pedaços,
chegar até o fim...14
Lembro Dom Hélder como um formulador de expressões que clareavam determinadas posições. Ouvi muitas delas nos anos em que Albérico e eu nos empenhamos em ajudar a comunidade no Recife na sua tarefa (1969-1975). Dom Hélder mencionou uma destas expressões quando acompanhei o Dr. Theodor Schober, presidente da obra diaconal da Igreja Evangélica na Alemanha e da organização “Pão para o Mundo”, em visita ao Dom. Schober ofereceu medicamentos para a farmácia assistencial que havia na arquidiocese. Dom Hélder explicou que o maior esforço junto ao povo era animá-lo para que ele próprio transformasse as estruturas de opressão em desenvolvimento para todos. Mas que havia uns 10, 20% de pessoas que não mais tinham condições de lutar. Eram os “feridos de guerra”, aos quais se deveria dar ajuda assistencial. E aceitou a doação.
Lembro Dom Hélder ainda pela simplicidade de vida e ausência de arrogância. Pela mesma época, o pastor Manoel de Mello, líder de “O Brasil para Cristo”, então o maior movimento pentecostal no Brasil, fazia uma evangelização no Recife. Mello pediu que um membro da Equipe Fraterna, grupo ecumênico local (“O Brasil para Cristo” já tinha se filiado ao Conselho Mundial de Igrejas), o acompanhasse em visita a Dom Hélder. Assim assisti ao primeiro encontro entre ambos, no qual principalmente Mello falou (generalidades sobre evangelização). O que me ficou mais na lembrança foi o pedido de Mello, no final, para orar pelo arcebispo e abençoá-lo. Dom Hélder humildemente inclinou a cabeça e aceitou.
Canto: Se as águas do mar da vida (Hinos do povo de Deus, nº 216)
Oração em ação de graças pela vida e testemunho de Dom Hélder Câmara
Deus!
Ouvimos,
cremos e confessamos que tu não ficas parado e distante de
nós.
Ouvimos, cremos e confessamos que a tua graça é
perceptível e experimentável.
Ouvimos, cremos e
confessamos que a ti se serve em realidade e
verdade,
solidarizando-se com as tuas criaturas,
“promovendo-as”
e
se opondo à “violência institucionalizada”
cuja “espiral” as esmaga (H. Câmara).
Deus,
agradecemos-te que desenhaste tudo isto ante nossos olhos e corações
(cf. Gl 3.1)
pela vida despojada e testemunho insofismável
do teu
servo Hélder Câmara, tornando-se ser humano
com
os seres humanos;
pela atitude humilde de ausculta dele
junto aos sem voz e vez;
pela sua luta sem trégua, “sem
medo e sem ódio”, pelo
“povo
mantido oprimido e pobre pelo modelo
econômico, sustentado
tanto por forças do País
quanto por forças
no estrangeiro” (H. Câmara).
Deus,
agradecemos-te que providenciaste que tanta gente no mundo inteiro,
também na IECLB,
encontrasse Hélder
Câmara,
fosse honrado com a confiança dele
e
permanecesse formado e orientado por ele para a vida
toda.
Sempre foi a alegria do dia, vê-lo e conversar com
ele.
Deus,
agradecemos-te por teu e nosso Hélder Câmara,
o bispo
que não “foi um espinho a mais na
coroa de espinhos
de Jesus” (cf. M. Lutero)
e que “queria ser o
jumentinho feliz em cima
do qual Jesus entra triunfante em
Jerusalém”;
por ele, o teu alerta para nós de
que “exagero em conforto e egoísmo desumaniza” (H.
Câmara);
por ele, a tua ilustração para nós
de como se vive de jeito
cristão neste grande e belo,
“triste e perverso país” (D. Ribeiro),
aliás
“livres, livres de nós mesmos para nos dar às
outras pessoas” (H. Câmara).
Deus,
agradecemos-te que agora permites a teu nordestino Hélder
Câmara ver
a realização da “esperança
dos pobres”,
por cuja “ascensão”, como
ele sempre nos dizia, “a gente
não pode esperar”,
e
festejar a consumação maravilhosa do teu plano para o
povo do nordeste e de tantas outras partes do mundo,
flageladas
pelos “soberbos, opressores, ricos e malvados” (J.
Passos).
Amém.
Mariama é um poema que foi recitado no contexto de uma celebração : A missa do Quilombos. Essa missa foi um projeto de D. Pedro Casaldáliga, Pedro Tierra e Milton Nascimento. Era uma proposta de celebração litúrgica que procurava resgatar a memória do povo negro e ao mesmo tempo um pedido de perdão por causa das atrocidades cometidas. Nas palavras de D. Pedro: a missa celebra a Morte e a Ressurreição do povo negro, na Morte e Ressurreição do Cristo.
Escolhemos este texto para ouvir por uma razão bem simples: é a única gravação que nós, aqui na Escola Superior de Teologia, temos de D. Hélder. Através do seu jeito manso, pausado, mas com muito vigor D. Hélder podia falar das agruras do povo e suscitar nos ouvintes uma atitude de esperança.
O poema Mariama, é uma evocação a Maria. Mariama é uma das formas de como escravos negros se dirigiam a Maria. Nós, como evangélicos luteranos, não cultivamos a devoção a Maria. Mas nessa invocação, D. Hélder liga-a ao sofrimento da mulher e do povo negro e com outras realidades de opressão e exclusão a que está sujeita a grande maioria do povo brasileiro. Ouçamos o Dom:
Canto: Época de Advento em Recife era tempo de caminhadas. Era tempo de preparo. Tempo de ligar fé e vida. Cantemos Da cepa brotou a rama.
Despedida
Abençoe-vos Deus
todo-poderoso,
Pai e Filho + e Espírito Santo.
Vamos em
paz,
e o Senhor nos acompanhe.
(Formulações
usadas por Dom Hélder Câmara)
1Celebração organizada por Albérico Baeske, Roberto Zwetsch, Nicolau Paiva e Germano G. Streese, luteranos vinculados à Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil que tiveram contato com Dom Hélder. No dia da celebração, outras pessoas também tiveram oportunidade de dar pequenos depoimentos acerca da vida e do testemunho de Dom Hélder, mas que não estão retratados neste texto.
2Ap. Rolf ITALIAANDER, Partisanen und Propheten: Christen für die Eine Welt. Erlangen: Ev.-Luth. Mission, 1972. p. 34s (Erlanger Taschenbücher, 18); adaptação de uma tradução de I. Kayser.
3Ap. id., ibid., p. 40; adaptação de uma tradução de I. Kayser.
4Ap. Hildegard LÜNING, Hélder Câmara, in: Hans Jürgen SCHULTZ, Von Gandhi bis Câmara, Stuttgart/ Berlin: Kreuz, 1971, p. 141; tradução de I. Kayser.
5Dom Hélder CÂMARA, Indagações sobre uma vida melhor, prefácio de José de Broucker, São Paulo: Civilização Brasileira, 1986, p. 6.
6Dom Hélder CÂMARA, O deserto é fértil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, p. 31.
7Ver nota 5.
8Dom Hélder CÂMARA, Indagações sobre uma vida melhor, prefácio de José de Broucker, São Paulo: Civilização Brasileira, 1986, p. 36.
9Id., ibid., p. 68s.
10Ibid., p. 71s.
11Dom Hélder CÂMARA, O deserto é fértil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, p. 101.
12Id., ibid., p. 11.
13Recentemente o teólogo leigo católico Gilbraz de Souza Aragão defendeu, na Faculdade N. S. da Assunção, em São Paulo, dissertação de mestrado sobre esse movimento, com o título: “Pobre evangelizando pobre: experiência libertadora do Espírito no Encontro de Irmãos do Recife” (1994). Aragão leciona atualmente na Universidade Católica do Recife.
14Dom Hélder CÂMARA, O deserto é fértil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, p. 41.