Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 2, p. 59-74

A agência dos despossuídos: tendências recentes nas teologias africanas
Gerson L. Flor


Resumo
As alterações no mapa político mundial na última década e meia e seus reflexos no continente africano, especialmente o fim do apartheid na África do Sul no início dos anos 90, impulsionaram as teologias africanas em novas direções. Um dos principais debates atualmente em curso é o da iniciativa das comunidades cristãs negras excluídas, que sob o apartheid eram freqüentemente rotuladas como alienadas. O presente artigo analisa alguns aspectos deste debate, especialmente a noção de “teologias incipientes” desenvolvida por James Cochrane.

Resumen
Las alteraciones en el mapa político mundial al final del siglo veinte y sus reflejos en el continente africano, especialmente el fin del apartheid en Sudáfrica al comienzo de los años 90, llevaron las teologías africanas hacia nuevas direcciones. Una de las principales discusiones, actualmente en curso, es el de la iniciativa de las comunidades cristianas negras excluidas, que bajo el apartheid eran frecuentemente clasificadas como alienadas. El presente artículo analiza algunos aspetos de esta discusión, especialmente en cuanto a la noción de “teologías incipientes” desarrollada por James Cochrane.

Abstract
The changes in the world map in the last decade and a half and their reflection on the African continent, specially the end of apartheid in South Africa in the early 1990's, drove African theologies into new directions. One of the main debates presently in course concerns the agency of the dispossessed black Christian communities, which under apartheid were often labeled as alienated. This paper analyzes some aspects of this debate, with special attention to the notion of “incipient theologies” advanced by James Cochrane.

Introdução



Este artigo não pretende oferecer uma visão geral atualizada da teologia africana, mas analisar um aspecto particular da mesma que, de modo especial, interessa à realidade latino-americana – a ênfase crescente no conceito de agência1 das comunidades cristãs situadas à margem da sociedade africana. Esses cristãos e cristãs marginais são geralmente considerados como politicamente alienados, por causa do seu pouco engajamento em formas manifestas de resistência mesmo durante os anos de luta contra o apartheid. A preocupação central, portanto, será analisar como a religiosidade popular presente em comunidades marginalizadas pode ser libertadora ao invés de alienante, como freqüentemente se argumenta na própria teologia profética2 sul-africana.

A discussão envolve alguns dos principais expoentes da teologia africana do final do século XX, particularmente James Cochrane e Robin Petersen, e toma por base a reflexão de Cochrane sobre uma série de estudos bíblicos semanais realizadas no assentamento (township) de Amawoti, região metropolitana de Durban, cidade portuária na costa leste da África do Sul, durante um período de quatro anos. Os estudos foram facilitados por Graham Philpott, um doutorando sob a orientação de Cochrane na Universidade de Natal, Pietermaritzburg3. Os argumentos de Cochrane serão arranjados em torno de dois focos principais: teologias incipientes e o diálogo entre estas e as teologias proféticas. Finalizando, algumas observações metodológicas são esboçadas.

Os teólogos aqui citados representam o sul do continente africano, onde a ênfase na libertação tem sido historicamente mais acentuada, enquanto que nas demais regiões da África o tema da inculturação predominou. Os anos 90, porém, com o fim da guerra fria e o advento do pós-colonialismo, aproximaram as teologias africanas em torno de uma agenda comum, em que a iniciativa sul-africana tem papel de destaque.

1 - Teologias incipientes

1.1 - Legitimidade

O conceito-chave na obra de Cochrane é o de teologias incipientes, uma reflexão experimental sobre a fé efetuada por leitores marginalizados – leitores sem treinamento teológico formal e situados em comunidades às margens da sociedade. Embora não sejam claramente articuladas, teologias incipientes não deixam de ser teologias legítimas e, como tais, resistem às influências externas de teologias oficiais.

Entre as características principais de uma teologia incipiente, Cochrane enfatiza sua localização contextual. Não se trata de uma teologia abstrata e universal, mas de uma teologia moldada pela sabedoria e pelas experiências diárias de uma comunidade que sofre exclusão social, econômica e cultural. Nesses contextos, onde saúde, educação e habitação são extremamente rudimentares e a sobrevivência é a preocupação principal, Deus é naturalmente visto como comprometido com as lutas pela vida e sobrevivência da comunidade.

Em Amawoti, a encarnação e a crucificação foram os temas cristológicos mais importantes – o primeiro porque Jesus nasceu pobre e humilde como um deles, o segundo porque retrata Jesus como alguém que se identifica com os sofrimentos da comunidade. Prioridade da praxis sobre a teoria (como fica claro na noção do Jesus ativo, a quem o grupo referia-se através de verbos, e não de títulos) e da oralidade sobre a escrita são outros traços importantes das teologias incipientes, como indicam os membros da comunidade de Amawoti e é confirmado em outras comunidades por Itumeleng Mosala e Musa Dube4.

Outro fator crucial nestas teologias incipientes é o papel central atribuído à ação do Espírito, como Petersen, Mosala e Dube enfatizam5. Esta presença do Espírito dentro da comunidade capacita as pessoas do local a discernir o Evangelho e curar enfermidades individuais e comunitárias. Como os estudos bíblicos em Amawoti concentraram-se sobre parábolas de Jesus e narrativas dos evangelhos, em que Jesus ocupa papel central, Cochrane não aborda este tópico.

1.2 - Oposição às teologias “que vêm de cima”

Um dos principais argumentos de Cochrane é que teologias incipientes são capazes de provar teologias oficiais, selecionando e adaptando-as às necessidades de suas comunidades. Quando a tradição não se encaixa na sabedoria da comunidade local, ela é considerada irrelevante e não é incorporada às suas convicções. Em teologias incipientes, “a fé é a fonte da tradição, e não o contrário”6.

As igrejas históricas, em geral, enfatizam os dogmas herdados através da tradição e de documentos confessionais como base de fé. Esta orientação dogmática, ao invés de promover unidade na comunidade cristã, deu origem a barreiras que separam a cristandade em partidos denominacionais. Segundo Cochrane, igrejas denominacionais não são capazes de tolerar a heterogeneidade doutrinária, e tendem a manter sua membresia presa a uma integridade confessional sob o controle do clero. Esse controle é opressivo por sua própria natureza e, como tal, cria resistências por parte das comunidades locais, que apegam-se à compreensão de fé experimentada e compartilhada na comunidade.

À mesma conclusão chega Dube7, que relata o surgimento das AICs8 como um êxodo das teologias opressivas dos missionários ocidentais. Sendo essencialmente a Igreja dos pobres, as AICs caracterizam-se por sua inconformidade com dogmas rígidos e estéreis que, na sua concepção, contradizem o testemunho do Espírito como doador da vida.

Embora a argumentação de Cochrane esteja correta em suas linhas centrais, ele evita tirar as mesmas conclusões a respeito de teologias contextuais articuladas por teólogos “em nome dos excluídos”. Por um lado, o próprio empreendimento de estudar teologias incipientes está em cheque, pois a oralidade dessas teologias marginais resiste a qualquer tentativa de sistematização, mesmo aquelas que supostamente têm como objetivo colaborar com as comunidades locais. Como Petersen observa:

Através do uso de “citação” e “referência”, a voz [de outros ou outras] é incluída dentro do texto; incluída com o objetivo de estabelecer o texto. Mas esta é uma voz que é disciplinada, aparecendo na forma de “citação”, acorrentada, domesticada. Duas estratégias emergem aí: a voz torna-se o meio da proliferação do discurso; mas a voz também oculta um excesso que interrompe o discurso, como a intrusão de vozes externas. Esta é a “voz” que assinala resistência, que escapa à disciplina do texto, que aponta para um “exterior” ao texto mesmo quando está inscrita dentro do texto.9

Por outro lado, não importa o quão “socialmente engajado” o teólogo ou a teóloga se proclame, ainda será alguém estranho à comunidade e que tem o poder do conhecimento a seu lado. Neste sentido, como Tinyiko Maluleke coloca10, o relacionamento entre o teólogo e a comunidade local será sempre assimétrico, não desprovido de mecanismos de poder, e torna a comunidade suspeita em relação ao engajamento do teólogo nos mesmos moldes em que se suspeita das Igrejas denominacionais. Afinal, como lembra Petersen, a teologia profética pode tornar-se “tão opressiva quanto as forças que ela supostamente desafia”11.

1.3 - Arma dos fracos ou contra os fracos?

Cochrane é um dos representantes de um dos principais aspectos do que Maluleke12 considera “um paradigma emergente para a teologia africana”, a saber, a incorporação de um novo conjunto de ferramentas sociológicas e antropológicas na abordagem teológica da religiosidade popular. Estas novas ferramentas oferecem uma alternativa às rígidas categorias marxistas que fatalmente levaram à rejeição das práticas das AICs como alienantes. Petersen trata detalhadamente desta questão em sua tese de doutorado, alegando que a rigidez das ferramentas analíticas marxistas levou a teologia profética na África do Sul a um entendimento equivocado das AICs e a uma contradição metodológica em que os seus supostos interlocutores eram condenados ou ignorados. Um exemplo claro desse tratamento negativo da religião popular é a crítica de Mosala:

Os símbolos e discursos africanos que se encontram na fé e na prática das AICs são a única coisa “negra” em sua hermenêutica. (...) Não há intencionalidade social nem teológica na maneira do movimento apropriar-se da Bíblia partindo da perspectiva de uma raça dominada. (...) As AICs são uma classe em si mesmas, mas não uma classe em favor de si mesmas.13

Este tipo de avaliação da religiosidade das AICs, fundada em definições marxistas rígidas de luta e consciência de classe, Petersen considera como “uma marginalização teórica dos já marginalizados, uma despossessão teórica dos já despossuídos”14.

Petersen e Cochrane, entre outros, empregam as teorias de Michel de Certeau, John Scott e Jean e John Comaroff para sustentar uma avaliação positiva da religiosidade popular, mostrando que, à sua própria maneira, comunidades marginais também estão resistindo à opressão, e suas práticas religiosas têm um papel importante nesta resistência. Para Petersen, formas declaradas de resistência são apenas a ponta do iceberg de um amplo leque de práticas sociais que capacitam as comunidades marginalizadas a resistirem ao sistema que as exclui. Essas comunidades tendem a evitar a resistência política organizada porque também esta é controlada por elites e registros escritos, preferindo a infrapolítica das lideranças informais, da oralidade e da resistência sub-reptícia15. Assim, Petersen rejeita a validade da dialética marxista entre consciência e alienação como parâmetro para julgar as práticas populares, que se encontrariam sempre em algum lugar entre estes dois extremos. Em resumo, o argumento de Petersen e Cochrane pode ser condensado nesta afirmação:

Longe de serem uma prática apolítica e irrelevante, os rituais, símbolos e ritos populares são meios de prover um espaço para a manifestação das pessoas excluídas da sociedade e que procuram contestar as formas de dominação que expropriam a agência e estruturam as vidas das comunidades marginalizadas. Esta contestação é muitas vezes mais radical e abrangente que muitas formas abertas de resistência e protesto.16

Este uso de De Certeau, Scott e dos Comaroffs na avaliação das AICs e das religiões populares em geral estabelece uma mudança importante nos rumos da teologia africana. O reconhecimento de que a resistência à opressão não é uma exclusividade de intelectuais e ativistas políticos, mas também está presente nas práticas cotidianas de comunidades marginalizadas que evitam participar em manifestações abertas de resistência, estabelece novas bases para o relacionamento entre as teologias proféticas e as comunidades de base, incorporando suas práticas à busca por justiça.

O principal desafio da Igreja, então, é aceitar a particularidade desses cristãos e cristãs marginalizados sem impor-lhes suas próprias condições ou valores, uma tendência perigosa que constitui uma ameaça permanente às relações entre instituições hierárquicas, como as igrejas denominacionais, e seus “clientes”, especialmente quando estes são desprovidos de poder e socialmente marginalizados. Mas isto será discutido adiante.

1.4 - Fonte de sabedoria e vitalidade para a Igreja

A tese central de Cochrane é que teologias incipientes são uma fonte de sabedoria teológica que não pode ser ignorada pela Igreja, se esta pretende que sua mensagem e atuação sejam relevantes, ecumênicas e pastorais. Para Cochrane, as práticas e crenças de pessoas ordinárias deveriam contribuir para formar, moldar e corrigir o depósito das tradições cristãs. Esta tradição inclusiva seria capaz de prevenir o Cristianismo de se tornar uma high church, uma igreja que seleciona as práticas de uma elite e as impõe como normativas em seu culto e dogma, excluindo aqueles grupos que já são social e economicamente excluídos pela sociedade, ao invés de elegê-los como sua prioridade.

Em outras palavras, Cochrane reclama a prioridade das comunidades marginais não apenas como interlocutores da teologia cristã e profética, mas também como agentes da sua articulação. Se suas vozes não estiverem presentes no momento em que a teologia é moldada, o resultado não pode ser considerado teologia inclusiva. A questão é se isto é algo possível de ser alcançado ou se constitui um ideal distante e impossível na prática. Para responder esta questão é preciso explorar a dinâmica e os desafios ao diálogo entre teologias proféticas e incipientes em maior detalhe.

2 - Teologias proféticas e incipientes em diálogo

2.1 - O pobre como interlocutor

Cochrane admite trabalhar com o conceito de pobre como interlocutor, forjado na América Latina e trazido por Per Frostin17 para a teologia africana, onde o termo pobre refere-se principalmente à população negra e, dentro desta, às mulheres em especial. No entanto, como a discussão acima já sinaliza, Cochrane está um passo adiante desta noção tradicional18. Sua intenção primária não é dar forma científica à “voz dos pobres”, mas fazer com que esta voz seja efetivamente ouvida pela Igreja e no meio acadêmico e tenha influência sobre sua reflexão teológica sem precisar se travestir de discurso acadêmico ou eclesiástico.

Isto exige uma conversão genuína da tendência a iluminar os excluídos com uma teologia superior para a disposição de ser teologia iluminada pela sabedoria e cultura religiosa dessas comunidades. Não se trata de uma romantização dos movimentos religiosos populares, um risco que sempre se corre em iniciativas deste tipo, como Maluleke corretamente observa19. Antes, trata-se de uma tentativa de ouvir e respeitar as teologias incipientes sem procurar julgá-las de antemão à luz de nossas ortodoxias. Pois “não se pode deixar de suspeitar de teorias que alegam funcionar em favor de pessoas cujos valores e sistemas simbólicos são de saída rotulados como suspeitos ou mesmo falsos”20.

Isto exige de teólogos e teólogas uma nova postura. Sua tarefa já não é circular em meio de vilas e favelas para então, no conforto e segurança de seus escritórios climatizados, digitar em seus laptops suas reflexões sobre “a voz dos despossuídos”. Mero conhecimento da realidade dos excluídos não é suficiente para produzir uma teologia dos excluídos. Para isto é preciso experimentar a exclusão.

Por esta razão, Cochrane insiste que a Igreja precisa dar atenção e ouvir as vozes vindas das margens, vozes esquecidas, vozes nunca realmente ouvidas, mesmo por aqueles que as têm como interlocutoras epistemologicamente privilegiadas. Assim, a diferença entre cristãos e cristãs com e sem treinamento acadêmico assume importância central. Se aqueles dominam o diálogo, o conhecimento acadêmico acaba por tomar o lugar da sabedoria da comunidade, criando uma relação orientada pelo poder – ou seja, opressiva. Por outro lado, se a comunidade não for desafiada, a “voz crítica da cristandade universal de todos os tempos” estaria sendo silenciada. Este dilema, para Cochrane, não tem solução, e uma suspeita permanente deve acompanhar todo o processo de diálogo21.

2.2 - O problema da alteridade

Cochrane acredita que o dilema da alteridade, ou da distância em relação ao outro, costuma ser minimizado nas diferentes teologias da libertação, já que as teologias locais mantêm-se críticas a teologias formuladas fora de seu contexto e resistem à pretensão que estas têm de representar a sua voz.

Ele analisa as reflexões de G. Spivak, para quem a idéia de falar em favor de outra pessoa, embora implique algum respeito à voz dessa pessoa, de fato pressupõe que quem fala, normalmente um intelectual ou ativista, pode compreender os “subalternos” melhor do que estes compreendem a si mesmos. Assim, ocorre uma “violência epistemológica” em que os “educados”, que geralmente acreditam que sua voz é expressão legítima da voz alheia, adotam uma postura messiânica em relação aos seus interlocutores para salvá-los da sua inabilidade em articular a própria voz e resistir à opressão22.

Exemplos claros dessa violência epistemológica são os estudos de Mosala e Dube23. Enquanto Dube ainda reconhece a influência que a sua presença como leitora treinada da Bíblia poderia exercer sobre as mulheres entrevistadas,24 Mosala simplesmente ignora o assunto. Além disso, ambos usam uma metodologia extremamente questionável, baseada em questionários por escrito e sermões sobre textos selecionados – o que elimina de saída uma das marcas centrais dos cultos das AICs: a espontaneidade. Apesar disso, tanto Mosala quanto Dube consideram suas conclusões um retrato fiel das crenças das pessoas entrevistadas.

2.3 - Comprometimento, colaboração, cooptação

Para contrabalançar o pessimismo de Spivak sobre as possibilidades de superação do dilema da alteridade, Cochrane apela para Elizabeth Schüssler-Fiorenza, que sugere o reconhecimento da voz das minorias como um corretivo para as distorções do pensamento moderno herdado do Iluminismo. A valorização prioritária do contextual sobre o universal poderia evitar a tendência moderna a visões uniformistas e imperialistas da realidade. A proposta de Schüssler-Fiorenza, porém, é de que este comprometimento com as minorias vá além do discurso e se transforme em um comprometimento colaborativo, em que as divisões na cristandade sejam expostas e que desemboque em ações concretas de colaboração com as pessoas social e economicamente excluídas.25

Cochrane tem consciência dos limites deste otimismo em relação à possibilidade de intelectuais não apenas ouvirem a voz dos marginalizados como também alterar seu status, porém usa a noção de comprometimento colaborativo como contraponto ao pessimismo de Spivak, acreditando ser possível uma síntese que leve a um ponto de equilíbrio entre os dois extremos. Para ele, os desafios colocados pela alteridade das comunidades marginais não deveria inibir teólogos e teólogas na busca de um comprometimento colaborativo com os despossuídos. Esta alteridade permanece, porém, como alerta para o fato de que todo relacionamento precisa ser baseado na abertura, no aprendizado mútuo e na disposição permanente em revisar práticas e teorias.

O risco de cooptação, apesar de tudo, sempre será real em iniciativas dessa natureza. Maluleke adverte contra o perigo de transformar o diálogo entre leitores “ordinários” e “treinados” da Bíblia em um mecanismo rígido em que pessoas são “enfileiradas em grupos de estudo bíblico com a finalidade de produzir uma espécie de hermenêutica bíblica popular”26. Este perigo ocorre, por exemplo, em algumas tentativas de sistematização de teologias incipientes, que, por serem sempre moldadas de acordo com os interesses de quem pesquisa, tendem a forçá-las a certas conclusões que evidentemente nunca estão em oposição aos interesses, ocultos ou manifestos, de quem pesquisa.

Um dos mais flagrantes exemplos dessa cooptação é a interpretação do uso da Bíblia pelas mulheres Batswana feita por Dube. Suas conclusões indicam um consciência praticamente absoluta da resistência pós-colonialista, como se cada pequeno detalhe da hermenêutica dessas mulheres fosse intencionalmente antiimperialista, anticolonialista, antiocidental. Mas de quem serão esses interesses – das mulheres Batswana ou da própria Dube? Logo é fácil fazer a voz alheia dizer o que nós queremos que ela diga.

Nem o próprio Cochrane escapa dessa tentação. Simpático a Ronald Nicolson, para quem, no contexto de pobreza da comunidade negra na África do Sul, a única cristologia relevante é aquela que apresenta Jesus como “catalisador de um processo de auto-salvação”, ele conclui, a partir dos estudos bíblicos em Amawoti, que, para os membros daquela comunidade, “redenção e libertação eram virtualmente sinônimos”27. Considerando a ênfase pneumatológica que caracteriza as AICs, é extremamente improvável que a comunidade de Amawoti pensasse assim. Redenção é um termo muito mais abrangente, e libertação apenas um de seus aspectos. Cochrane distorce a conexão entre material e espiritual como realidades interdependentes em Amawoti, de tal modo que o espiritual parece limitado pelo material. Estes exemplos deveriam ser um alerta para que o pessimismo de Spivak seja levado realmente a sério por quem quer que Igreja e meio acadêmico abram espaço para as vozes vindas das margens.

2.4 - Partindo da Galiléia: uma teologia a partir das margens

A solução proposta por Cochrane para toda esta problemática, permanecendo fiel à noção de privilégio epistemológico dos marginalizados, considera as comunidades marginalizadas como ponto de partida da reflexão teológica da Igreja. A reflexão incipiente que essas comunidades realizam sobre sua fé deveria informar a teologia formulada em círculos acadêmicos e eclesiásticos de modo que uma eclesiologia nova e inclusiva emergisse.

Nessa perspectiva, segundo Cochrane, o privilégio epistemológico dos marginalizados não se torna um ideal romântico, uma concessão generosa de intelectuais comprometidos e líderes religiosos sensíveis, mas uma atitude necessária para contrabalançar a discriminação que esses cristãos e cristãs sofrem dentro da Igreja como conseqüência de sua exclusão social e econômica. Se a Igreja realmente pretende ser relevante para essas pessoas e quer que elas integrem a comunhão cristã, a inclusão de suas vozes e práticas na formulação da tradição e do discurso da Igreja torna-se um imperativo:

Ouvir e dialogar com comunidades ou pessoas normalmente consideradas insignificantes em sua contribuição à verdade cristã, é um fundamento metodológico fundamental para testar esta verdade. Do contrário, as verdades cristãs, supostamente gerais, continuarão a ser aquelas dos poderosos, das elites, dos intelectuais, dos grupos dominantes na sociedade e na história.28

Seria útil, no entanto, aplicar as mesmas precauções aos discursos das teologias proféticas. Estas, embora considerem-se contextuais e articuladas em favor dos oprimidos, por vezes agarram-se aos seus próprios conceitos de modo tão fundamentalista que chegam a julgar as teologias incipientes e suas práticas unicamente à luz desses conceitos. Quando as teologias incipientes ajustam-se a essas convicções, são louvadas e tomadas por paradigma; quando não, são rejeitadas e rotuladas de alienantes. Mosala é um caso típico desta postura. Argumentos contra uma visão romântica dos oprimidos não são capazes de ofuscar a violência embutida nesta atitude, que apenas altera o tipo de opressão em questão: de um opressão dogmático-religiosa para uma ideológico-acadêmica29.

Fazer teologia contextual não é um empreendimento simples, que exige mais do que um comprometimento em “salvar” comunidades marginalizadas da exclusão. Esta seria uma teologia de baixo para cima, e não das margens para o centro. Cochrane quer mostrar que uma verdadeira teologia contextual permite que comunidades marginalizadas, com suas práticas cotidianas e sabedoria experimental, tomem assento entre as forças que moldam o discurso teológico e as tradições da Igreja cristã. Ela rejeita em absoluto a via inversa – trazer teologias/ideologias de fora para “ensinar” as comunidades de base a refletir sobre sua fé e práticas de um modo libertador e articular uma voz que, em última análise, já não é a da comunidade, mas daqueles que julgam saber do que a comunidade precisa.

Teologia contextual é um conceito ainda a ser definido. Cochrane oferece uma contribuição importante nesse sentido, apontando para uma mudança promissora na reflexão e na prática teológica em solo africano cujos reflexos, espera-se, serão sentidos muito além de suas fronteiras.

3 - Comentários e conclusões

A discussão acima requer algumas observações metodológicas. Em primeiro lugar, o grande mérito de Cochrane está em ir além da escolha dos despossuídos como interlocutores. Ele tenta efetivamente recuperar suas vozes, ao invés de representá-las apenas no discurso sem, porém, aceitar sua subjetividade, visão de mundo e contexto gerador. É claro, porém, que Cochrane também não está isento de interesses ao ouvir reflexões sobre a fé de comunidades marginais, e por melhores que sejam essas intenções, elas tendem a agir como um princípio organizador sobre a teologia incipiente dos moradores de Amawoti. O ideal seria resistir ao impulso moderno de aprisionar estas teologias incipientes – e, portanto, não rígidas – em registros escritos que, como Petersen lembra, em última análise, excluem a voz que pretendem representar.

Uma segunda observação diz respeito à ênfase que teólogos como Cochrane, Petersen, Maluleke e outros vêm dando à agência do povo africano. Na base dessa valorização das práticas das comunidades marginalizadas, está o abandono de categorias marxistas estritas em favor de vozes como as de De Certeau, Scott e dos Comaroffs. Enquanto nas teologias da libertação, tanto na África como na América Latina e em outros contextos, a teologia permanecia uma atividade em que intelectuais tinham um papel preponderante na articulação da voz dos excluídos, agora reconhece-se a capacidade dessas pessoas marginalizadas desenvolverem sua própria reflexão sobre sua fé e prática, usando ferramentas providas por sua sabedoria comunitária, localização contextual e resistência diária. Essas comunidades não necessitam de uma voz externa que legitime sua reflexão teológica. Isto capacita-as a resistir e provar influências externas sobre sua fé e prática, além de ligar esta fé a sua resistência diária contra a opressão socioeconômica.

Por fim, a reflexão de Cochrane sobre a teologia incipiente da comunidade de Amawoti deve ser considerada como um empreendimento limitado. Já o denuncia a própria fonte de sua análise – uma série de estudos bíblicos sobre parábolas e narrativas dos evangelhos. Se, por um lado, esta parece uma escolha natural para uma comunidade onde narrativas são mais eloqüentes do que discursos e argumentos, por outro, ela impõe sobre o resultado um foco cristológico. Entretanto, Petersen lembra que a cristologia é uma ênfase tradicional das teologias proféticas, enquanto que, nas AICs, de onde vem a maioria dos integrantes do grupo de estudos bíblicos de Amawoti, a ênfase maior cai sobre a pneumatologia, como Dube atesta. Embora a escolha da cristologia ao invés (e não ao lado) da pneumatologia possa fornecer pistas interessantes sobre a teologia incipiente da comunidade, não se pode evitar a impressão de que é uma violência metodológica contra o grupo de Amawoti. Mas é claro que quem escolhe quais textos são relevantes para formar a base de uma reflexão teológica não é o leitor ou leitora ordinária, mas os leitores treinados, que têm seus próprios interesses em um trabalho desta natureza.

Estas considerações refletem uma tendência importante na teologia africana nos últimos anos. Há um consenso crescente quanto à necessidade e a simbiose possibilitada pelo diálogo entre Igreja, academia e comunidades marginais e quanto ao papel ativo desempenhado por estas últimas na revitalização e contextualização permanente do evangelho. Porém, é possível também prever que o dilema do relacionamento entre teologias proféticas e incipientes tende a crescer, exigindo maior reflexão sobre o problema da alteridade implicada no diálogo entre ambas. Respeito pelos parceiros de diálogo é um requisito fundamental para o seu sucesso. E isto só será possível se a maior quantidade possível de “outros” for incluída nesta tarefa.

Bibliografia

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1Por agência entenda-se “o papel ativo de pessoas que, de outra forma, seriam meros objetos de pesquisa, na construção de seu próprio conhecimento” (Cochrane, apud: Graham PHILPOTT, Jesus is Tricky and God is Undemocratic, p. 8).

2O termo teologia profética é usado aqui de acordo com o Kairos Document, de 1985, que assim se refere às teologias ativamente engajadas na denúncia contra o apartheid, na África do Sul.

3James R. COCHRANE, Circles of Dignity; Graham PHILPOTT, Jesus is Tricky and God is Undemocratic.

4Itumeleng J. MOSALA, Race, Class, and Gender, p. 54-5; Musa W. DUBE, Readings of Semoya, p. 126.

5Robin M. PETERSEN, Resistance and Reconstruction, p. 272; Itumeleng J. MOSALA, Race, Class, and Gender, p. 53; Musa W. DUBE, Readings of Semoya, p. 112.

6James R. COCHRANE, Circles of Dignity, p. xxiii.

7Musa W. DUBE, Readings of Semoya, p. 124.

8African Independent Churches (hoje prefere-se a expressão African Initiated Churches) são Igrejas cristãs que preservam costumes e tradições africanas banidas pelos missionários europeus, como curas pelo Espírito, veneração de ancestrais, etc. Possuem natureza pentecostal e seus integrantes geralmente pertencem aos grupos mais excluídos da sociedade.

9Robin M. PETERSEN, Resistance and Reconstruction, p. 191.

10Tinyiko Sam MALULEKE, The Bible among African Christians, p. 93-4.

11Robin M. PETERSEN, Resistance and Reconstruction, p. 176.

12Tinyiko Sam MALULEKE, A Rediscovery of the Agency of Africans.

13Itumeleng J. MOSALA, Race, Class, and Gender, p. 55-6.

14Robin M. PETERSEN, Resistance and Reconstruction, p. 176.

15Id., ibid., p. 213-4.

16Ibid., p. 232-3.

17Per FROSTIN, Liberation Theology in South Africa and Tanzania, p. 6-7.

18Para Frostin, prioridade epistemológica dos pobres significa que “o conhecimento da experiência das pessoas definidas como pobres é uma condição necessária para a reflexão teológica”, e seu objetivo é “desenvolver cientificamente uma teologia que fale com a voz dos pobres e marginalizados na história” (Per FROSTIN, Liberation Theology in South Africa and Tanzania, p. 6-7).

19Tinyiko Sam MALULEKE, A Rediscovery of the Agency of Africans, p. 14.

20James R. COCHRANE, Circles of Dignity, p. 4.

21Id., ibid., p. 11-12.

22Idem, p. 98.

23Itumeleng J. MOSALA, Race, Class, and Gender; Musa W. DUBE, Readings of Semoya.

24Musa W. DUBE, Readings of Semoya, p. 115.

25Cf. James R. COCHRANE, Circles of Dignity, p. 105.

26Tinyiko Sam MALULEKE, The Bible among African Christians, p. 93.

27James R. COCHRANE, Circles of Dignity, p. 27, 50.

28Id., ibid., p. 51.

29Cf. Tinyiko Sam MALULEKE, A Rediscovery of the Agency of Africans, p. 14-5.