Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 3, p. 77-83

A bela profissão de fé
Werner Fuchs

Resumo
O artigo levanta questionamentos à prática vigente em muitas comunidades da IECLB no que diz respeito à profissão de fé de pessoas adultas. Constata que a questão é não raro tratada burocraticamente, perdendo-se a oportunidade de integrar pessoas na caminhada da comunidade e de tornar a Profissão de Fé “bela”, isto é, um momento forte, espiritualmente significativo, em termos pessoais e comunitários.

Procura a justiça, a piedade, a fé, o amor, a perseverança, a mansidão. Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, à qual foste chamado, como o reconheceste numa bela profissão de fé em presença de numerosas testemunhas” (1 Tm 6.11s [TEB]).

Entre as experiências mais gratificantes que fiz durante a prática pastoral em comunidades da IECLB,* citaria, sem a menor dúvida, as preparações para a Profissão de Fé. Foram oportunidades preciosas de articular e compartilhar a fé cristã e de caminhar conjuntamente para um compromisso com a Igreja de Cristo, presente numa comunidade concreta, ao mesmo tempo pecadora e santa. Entretanto, apesar dessa experiência pessoal positiva, constato que, na IECLB, a Profissão de Fé está cercada de contradições, ou simplesmente de silêncio ou ignorância. Compartilho, pois, minha visão do problema e minha limitada experiência, esperando contribuir para uma ação pastoral mais consistente.

1 – O problema

Nos documentos normativos da IECLB, a Profissão de Fé de adultos é claramente definida como teológica e juridicamente equivalente à Confirmação, realizada com adolescentes. “Somos membros comungantes após nossa confirmação ou nossa profissão de fé” (Nossa Fé – Nossa Vida, p. 5, em vigor desde 1972). “Os membros são considerados membros votantes a partir da data de sua confirmação ou profissão de fé” (Regimento Interno, Art. 14). Vale notar desde já que a equivalência teológica não deve encobrir uma diferença prática: a Confirmação serve ao crescimento vegetativo da Igreja, pois se concentra em filhos de membros, batizados, enquanto a Profissão de Fé serve ao crescimento missionário, pela integração de novos membros. O Regimento Interno antigo dizia claramente que: “Membros de outra Igreja cristã, maiores de quatorze (14) anos e batizados..., serão admitidos na Comunidade mediante a sua profissão de fé, após terem recebido a necessária instrução na doutrina cristã” (Art. 10, em vigor desde 1968?). O novo Regimento Interno, aprovado pelo Concílio da Igreja em outubro de 1998, repete a mesma definição. Muito estranhamente, porém, insere após “mediante sua profissão de fé” a emenda: “ou pela bênção matrimonial” (Art. 11)!

Desconheço os argumentos de quem propôs e os pensamentos de quem aprovou essa emenda, mas a equivalência entre Profissão de Fé e “Bênção Matrimonial” não deixa de ser teologicamente absurda. Receber a bênção para um compromisso conjugal é um momento pessoal e comunitário totalmente diferente do momento de alguém abraçar publicamente uma comunidade de fé. Como se explica a emenda? Seria uma rendição ao tradicionalismo, coroando a prática antiga de inscrever novos membros adultos na tesouraria quando casam com membros da IECLB? Neste caso, a emenda seria mais um dos indícios de que os ventos de renovação que sopraram pela IECLB nas décadas anteriores já se dissiparam nos anos 90? Ou seria ela apenas a conseqüência do desconhecimento e da ausência de uma reflexão bíblico-teológica e prática consistentes, lacuna essa que seguidamente leva as instâncias deliberativas da IECLB a aprovarem normas irrefletidas, como, p. ex., o “dízimo”?

Fato é que, a despeito da equivalência teológica e jurídica da Profissão de Fé com a Confirmação, jamais foi dedicada, na IECLB, atenção alguma à Profissão de Fé, como se pode notar na absoluta falta de produção de material (subsídios, certidões, registros), no despreparo de obreiros, na inexistência da troca de experiências entre obreiros e comunidades, no silêncio da literatura teológica sobre o assunto,** bem como na dificuldade de colher dados estatísticos (cf. Boletim Informativo da IECLB, Nº 169, p. 12, item 7). Um amigo na Alemanha, em funções semelhantes à de Pastor Sinodal, lamentava que lá também não existem experiências práticas, nem materiais catequéticos, nem interesse, para a orientação de novos membros evangélicos adultos, vindos, p. ex., de ex-repúblicas soviéticas. O curioso é que entre nós essa lacuna vem se mantendo teimosamente durante as discussões e iniciativas (válidas) sobre “comunidade missionária”, “formação de líderes”, “comunidade participativa e solidária”, “edificação (ou melhor: desenvolvimento) de comunidade”, “ministério compartilhado”, “Aqui você tem lugar”, “Tempo de lançar”, etc. Mais ainda, nos anos passados, nenhuma das diversas tendências ou “movimentos” dentro da IECLB interessou-se particularmente pela Profissão de Fé (pelo que sei, nem a PPL, nem o Encontrão, nem a MEUC, nem a EST, nem outro grupo reagiu à emenda acima). Parece um boicote sistemático e unânime de todas as linhas teológicas durante décadas! Contudo, não consigo imaginar que razões conscientes haveria para uma atitude dessas. Por outro lado, não estou afirmando que a Profissão de Fé seja a chave por excelência da renovação missionária da Igreja. A ilustração bíblica da seara, à qual o Senhor deve enviar trabalhadores (Lc 10,2), não significa que eles não levem “foice” (Jl 3,13) ou não a “afiem”, nem que entre eles não existam os que recolhem os feixes no celeiro! Mais do que revelar a falta de um raciocínio prático sobre princípio, meio e fim de uma ação, o que essa situação de total desconsideração da Profissão de Fé denota, é que não percebemos o que Deus tem a nos dizer a partir de fora (“extra nos”!), ao nos enriquecer com jovens e adultos, homens e mulheres que ingressam na IECLB com uma experiência de fé e vida diferente da nossa. Bastamo-nos a nós mesmos. Não acreditamos que Deus nos abençoa através do “outro”, dos que vêm de fora ou “de baixo”, muito embora já o tenha feito tantas vezes! Será que podemos aprender a dizer a esses de fora: “Precisamos de vocês” para ser corpo de Cristo (1 Co 12,11)?

Não posso negar que nas comunidades acontecem diversas formas de admissão de adultos, muitas vezes sem o nome regimental de “Profissão de Fé” (um termo técnico corrente também em outras denominações) e realizadas em conjunto com a “apresentação” ou “integração” de membros transferidos de outras comunidades. Do mesmo modo são extremamente variadas as formas da preparação e do momento litúrgico, deixadas a critério do respectivo obreiro. O envolvimento do presbitério e da comunidade em geral é mínimo. Observa-se que, quando não é em decorrência da migração ou da busca de bênção matrimonial, os adultos que se interessam pela IECLB em geral são trazidos pelos setores mais dinâmicos da comunidade (grupo de jovens, movimento de casais, grupos de comunhão, etc.), mas os órgãos diretivos dela (presbitério conservador, obreiro sobrecarregado, etc.) lhes dedicam um tratamento mais burocrático, e menos pessoal. P. ex., um grupo de cerca de 40 pessoas assiste a duas palestras e é apresentado à comunidade no domingo seguinte. A conseqüência é que, apesar do ingresso de novos membros, a comunidade não muda, não cresce em estatura (Ef 6.13), e a maioria dos novos admitidos torna-se pouco dinâmica. A Profissão de Fé deixa de ser “bela”, tanto para quem dá o testemunho quanto para as “numerosas testemunhas”.

2 – A experiência

O contexto predominante da Profissão de Fé é a comunidade urbana, mas no interior a situação torna-se cada vez mais semelhante. Pela diminuição do número de filhos nas famílias, decresce anualmente o número de adolescentes nos cursos de preparação para a Confirmação. Houve anos em que o número de adultos que preparei para a Profissão de Fé era maior que o de jovens em busca da Confirmação. As origens desses adultos que se interessaram eram diversas: membros indiferentes de outras igrejas, atraídos pelo testemunho de membros da IECLB ou pela proposta pastoral da comunidade (ou de grupos, de várias tendências); ex-membros da própria IECLB, desgarrados pela instabilidade social ou por conflitos pessoais; batizados na IECLB que nunca compareceram à Confirmação; pessoas insatisfeitas com outras denominações; ou apenas curiosos que migravam entre uma igreja e outra. Lembro, em especial, de duas moças de origem católica que perguntaram a suas vizinhas por que iam à Juventude Evangélica e o que faziam lá, e em seguida pediram que lhes falassem de Jesus, que as evangelizassem! Tomaram uma decisão por Jesus e logo se engajaram na Escola Dominical. Lembro de dois casais de noivos vindos de outras igrejas, que “descobriram” a Bíblia, lendo-a até altas horas da noite, e que compareciam às reuniões sedentos por explicações, sobretudo numa perspectiva feminista. Lembro do rapaz militante do PT, que se sentiu atraído pela espiritualidade evangélica e que buscava um conhecimento bíblico que também o orientasse na militância política e ecumênica. Lembro o ex-membro que até estudara num colégio evangélico, mas depois girou pelo mundo, perdeu a família, até que Deus lhe mostrou o quanto perdera e que podia servir com seus dons musicais em comunidades da IECLB. Lembro de muitos outros, universitários e bancários, de semi-analfabetos e mães solteiras, e de membros da IECLB que traziam a noiva e de repente participaram dos estudos com o máximo interesse. Valiosa também era a amizade que surgia nos grupos.

O importante é que essas pessoas buscam adesão à IECLB numa fase madura da vida, trazendo consigo uma bagagem rica, diversificada, e sedentas por refletir sobre alegrias e fracassos que experimentaram ou idéias com que se depararam na vida. Alguns vêm de experiências de conversão profundas, outros ainda estão na busca e crescem na fé durante a preparação. Por isso a preparação é muito mais do que transmitir conteúdos doutrinários ou informações históricas e atuais sobre a IECLB. Ela envolve também o crescimento pessoal e espiritual, a integração no grupo de preparação e o entrosamento na comunhão eclesial. Em decorrência, demanda também que a comunidade se interesse por esses novos membros, que se torne acolhedora. Devido à sua característica dinâmica, no entanto, a preparação também precisa conceder que alguém adie a Profissão de Fé ou até desista dela quando não se sente preparado. Além disso, alguns dos participantes vinham de igrejas que não realizam batismo de crianças, pelo que o curso serviu para prepará-los ao batismo de adultos (a recente polêmica entre S. Heumann e W. Altmann em periódicos da IECLB faz concluir que de nada adianta existir na IECLB a opção teórica do batismo de adultos, se não somos capazes de oferecer a pessoas não-batizadas uma forma concreta e significativa de preparação, de batismo e de integração na igreja. Na prática, continua vitorioso o tradicionalismo).

A forma mais recente da preparação desenvolvida por mim foi a seguinte: divulgação do curso, inscrição na secretaria, conversa pessoal; quando havia um número de cinco a dez, definição de horário para os encontros; oferta de uma seqüência de seis encontros quinzenais com proposta de temas (fé; Deus, Jesus, Espírito Santo; a Reforma protestante; informação sobre a IECLB, outras igrejas; vida cristã, prática da oração); pequenos exercícios e leituras em casa (Bíblia, folheto “Quem são os luteranos”, textos do ICTE; Nossa Fé – Nossa Vida); eventualmente mais encontros para aprofundar temas solicitados pelo grupo (p. ex., batismo no Espírito Santo, imortalidade, Apocalipse); participação em atividades da Igreja; informação ao presbitério; culto especial festivo de Profissão de Fé (testemunhos de fé pessoais, compromisso com base nas perguntas do Manual de Ofícios e palavra bíblica escolhida pelos participantes, designação de membros dispostos a orarem durante um mês por cada um dos admitidos); às vezes, almoço simples de confraternização após o culto; registro dos admitidos no livro das Confirmações. O processo todo durava até três meses. Será que foi tempo suficiente para um crescimento e uma integração mútua? Confesso que nesse aspecto nem sempre houve sucessos. Espero que através de uma maior troca de experiências surjam critérios mais consolidados.

3 – Desafio

A missão da Igreja não é crescer em número, mas ser sal e luz no mundo, associando-se à missão que Deus já vem desempenhando nele. Para a nossa sobriedade, o texto bíblico citado no início continua dizendo que Jesus fez a sua bela Profissão de Fé “diante de Pilatos” (1 Tm 6.13)! Mas, se formos fiéis a essa missio Dei, Deus poderá nos agraciar com “primícias”. Então é nossa a responsabilidade de integrá-los na caminhada da comunidade, esforçando-nos para tornar a Profissão de Fé “bela”, isto é, um momento forte, espiritualmente significativo, em termos pessoais e comunitários. Do contrário seremos testemunhas, cada vez menos numerosas, de como membros saem da IECLB em busca de “experiências fortes” em outras igrejas, como o rebatismo ou a unção do Espírito, ou de como os novos membros aos poucos esquecem o “bom combate” da justiça e do amor.


*Maringá, Curitiba (Centro) e Ijuí (B. Modelo).

** As únicas referências que encontrei são três: G. K. F. WEHRMANN, em Proclamar Libertação, Suplemento 2, 1988, p. 11, apenas arrola a “Admissão” entre os “ofícios com caráter de bênção”; G. U. KLIEWER, em Estudos Teológicos 1980 (3), p. 174, pergunta por que “não realizar... a recepção de um membro num culto de Santa Ceia na comunidade e com uma liturgia que alude ao fato?”; Oziel C. de OLIVEIRA, em: “A tentação pentecostal”, no caderno especial da Semana Teológica da EST de 1999, p. 21s, explica que, na Missão Zero em Araçatuba-SP, o curso prepara para “ser membro publicamente confesso” em nossa igreja e habilita para a “Profissão de Fé”. Essa última referência, portanto, seria a única vez em que ocorre o termo próprio “Profissão de Fé”!