Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 2, p. 5-17

Primórdios da formação teológica na IECLB: Concessão do título de Professor Emérito ao P. Dr. Lindolfo Weingärtner
Lothar Carlos Hoch (Reitor)

Resumo
Apresentamos abaixo o discurso proferido pelo P. Dr. Lothar Hoch, Reitor da Escola Superior de Teologia da IECLB, por ocasião do Culto de Ação de Graças, realizado na Capela da referida Escola, em 28-03-2001, no qual foi homenageado o ex-professor e ex-reitor P. Dr. Lindolfo Weingärtner, a quem foi concedido o título de Professor Emérito. Logo a seguir, reproduzimos a pregação realizada pelo homenageado naquele culto.

Resumen
Presentamos a continuación el discurso pronunciado por el P. Dr Lothar Hoch, Rector de la Escuela Superior de Teología de la IECLB, por ocasión del Culto de Acción de Gracias, realizado en la Capilla de la referida Escuela, el 28 de marzo del 2001, en el cual fue homenajeado el ex-profesor y ex-rector P. Dr. Lindolfo Weingärtner, a quién fue concedido el título de Profesor Emérito. Seguidamente, reproducimos la predicación realizada por el homenajeado en aquel culto.

Abstract
In the following article we present the speech proffered by Pastor Dr. Lothar Hoch, Rector of the Escola Superior de Teologia of the IECLB, during the thanksgiving worship service at the chapel of the above mentioned institution, on March 28, 2001. At this service the ex-professor and ex-rector, Pastor Dr. Lindolfo Weingärtner, was honored with the title of Professor Emeritus. Following the speech we reproduce the sermon that Dr. Weingärtner preached at this service.Caro Pastor Presidente da IECLB, Huberto Kirchheim!



Caro Presidente do Conselho Curador da Escola Superior de Teologia, P. Nelso Weingärtner!
Caro Dr. Aloysio Bohnen, Magnífico Reitor da UNISINOS
Prezada comunidade acadêmica da Escola Superior de Teologia!
Caros ex-alunos e ex-alunas da Faculdade de Teologia!
Queridos amigos da EST!
Caro P. Dr. Lindolfo Weingärtner, nosso homenageado especial nesse culto de louvor pelos 55 anos de existência da Faculdade de Teologia!

O ato solene que passo a presidir agora tem o objetivo de outorgar o título de Professor Emérito ao P. Lindolfo Weingärtner. Esse título, segundo o capítulo IV, artigo 65, inciso I, do Regimento Geral da EST, destina-se “a professores aposentados que tenham alcançado posição eminente no ensino e na pesquisa”. Por iniciativa da Reitoria e com o voto unânime de todos os integrantes do Conselho Curador que tiveram a oportunidade de se manifestar epistolarmente, a Escola Superior de Teologia da IECLB entendeu que o senhor, P. Dr. Lindolfo Weingärtner, seria merecedor desse título honorífico. E somos gratos que o senhor aceitou essa homenagem e pôde fazer-se presente aqui entre nós.

Passo a fazer a apresentação do nosso homenageado.

O P. Dr. Lindolfo Weingärtner nasceu em 27/08/1923, na localidade de Santa Isabel-SC, como filho de Roberto e de Guilhermina Weingärtner. Até o sétimo ano primário freqüentou a escola comunitária, em Santa Isabel. Ainda muito jovem sentiu-se vocacionado para o ministério pastoral e veio a São Leopoldo para ingressar no Instituto Pré-Teológico. Na época, o IPT preparava jovens das comunidades da IECLB para o estudo de teologia, curso esse que estava previsto ser realizado na Alemanha, pois no Brasil ainda não havia um centro de formação de pastores. Tratava-se de um curso clássico com ênfase no estudo de línguas: alemão, grego e latim. Alguns dos seus professores, na época, foram Fülling, Dohms, Soth, Fausel e Hinrichs, que está entre nós hoje. É importante lembrar que, em 1939, eclodiu a Segunda Guerra Mundial, fato que teria conseqüências importantes para o jovem Lindolfo, para seus colegas e para toda a IECLB.

Faço aqui um parêntese para apresentar partes de um pequeno texto não publicado de reminiscências do próprio Pastor Lindolfo, intitulado Os ‘pastores substitutos’ no tempo da guerra, onde ele conta episódios interessantes e dramáticos daquela época conturbada da história, justamente quando ele estava concluindo o IPT, e que acabaram sendo decisivos para a criação da Faculdade de Teologia da IECLB. Esse texto me foi gentilmente cedido pelo P. Nelso Weingärtner, Presidente do Conselho Curador da Escola Superior de Teologia.

O Pastor Lindolfo conta que, no início do ano de 1942, “32 pastores de cidadania alemã foram aprisionados em campos de concentração, nas cercanias de Porto Alegre e Florianópolis. Numerosas comunidades assim estavam sem pastor, o que na situação de então era um desastre ainda maior do que seria hoje.

Nesta situação desesperadora, o pastor Dohms, presidente do Sínodo Riograndense, preparou uma dúzia de formandos do Instituto Pré-Teológico, num curso rápido de 3-4 semanas, para assumir o serviço pastoral nas comunidades vagas, como “substitutos de pastores”. Na primeira leva, assim, foram enviados, entre outros, Edgar Liesenberg, Erdmann Götz, Kurt Benno Eckert, Gottfried Boll, Guido Tornquist, Rodolfo Schneider, Augusto Kunert, Harald Röpke – com exceção de Liesenberg e Götz, todos rapazes de 18 e 19 anos.

Eu pessoalmente, diz o P. Lindolfo, também tinha 18 – mas aparentava 15, e assim Dohms pôs-me em banho-maria no IPT, onde servi o ano como professor auxiliar – até outubro, quando também fui submetido ao “curso rápido” de teologia pastoral e fui enviado para as paróquias de Picada dos Moinhos e São Lourenço do Sul, onde os pastores Lörsch e Wandschneider tinham sido presos. Como todos os demais, recebi do Sínodo: um terno preto, um chapéu preto, um par de sapatos pretos, uma capa Renner (esta era cor de cinza), o dinheiro para a viagem, uma Bíblia e uma agenda (pretas), mais uma coleção de sermões de vários autores, escritos num português que mesmo para mim não era totalmente inteligível.

Em Picada dos Moinhos, eu era levado de carroça para as filiais, e às vezes pedia emprestado um cavalo de montaria (lembro que num dia chuvoso me trouxeram um cavalo nervoso, no qual me deixaram montar depois de eu ter afirmado que montava bem, já que era filho de colono. O cavalo parece que não entendeu o que eu falei, assustou-se da capa que eu já tinha colocado e me derrubou espetacularmente... Mas, a segunda tentativa deu certo, o que definitivamente firmou minha posição na comunidade).

As comunidades, aliás, depois de um tempo de desconfiança, recebiam o meu serviço muito bem – o que se pode dizer também de todos os demais colegas. Acho que havia até uma fome do evangelho: o pessoal só entendia um português rudimentar, mas mesmo assim eles vinham para os cultos e estavam gratos por cada palavra que entendiam.

Com a volta do Pastor Lörsch, em abril de 1943, eu fui transferido por Dohms para São Lourenço do Sul, onde passei a morar na casa pastoral desocupada, recebia minhas refeições em marmita de restaurante, e no mais me virava sozinho. Uma vez por mês eu viajava a Pelotas onde o pastor Simon tinha sido expulso pelo populacho, que incendiara a igreja e a casa pastoral, ainda marcadas pelo fogo. Em Pelotas, eu morava no Hotel Tessmann, e a partir daí organizei meu serviço: Batismos e devoções em casas particulares, tudo secreto, pois era só passar perto da igreja, e já se ouviam os gritos de “quinta coluna” do pessoal tomado pela psicose de guerra.

Em começo de 1944, recebi carta de Dohms, na qual ele me comunicava que Frau Präses Stoer lhe tinha escrito pedindo-lhe que me liberasse para o serviço pastoral em Rio do Sul e Trombudo, já que seu marido e o pastor Laun se achavam presos em Florianópolis. Em fevereiro, então, transferi-me para Rio do Sul. Também nas duas extensas paróquias eu ia sendo transportado de carroça, de uma comunidade a outra. Algumas vezes também ia de aranha. Lembro que em Trombudo Alto não tinha havido culto por seis meses. Quando, no culto, pedi que os pais e os padrinhos apresentassem os batizandos, toda a comunidade se levantou. Havia 24 crianças a batizar.”

Nos meses seguintes, o pastor substituto Lindolfo Weingärtner ainda viria a atender outras comunidades catarinenses como Ibirama, Presidente Getúlio e Brusque, entre outras. Em retrospecto, ele afirma o seguinte: “Era um serviço de emergência, mas eu sentia que não estava pregando um evangelho substitutivo, mas o evangelho simples e claro de Jesus Cristo, e isso me ajudou desde o início a superar as coisas muito humanas que encontrei nas comunidades – pequenas e grandes intrigas e o velho jogo de poder entre grupos – e também entre pastores. Quando, em março de 1946, reencontrei meus colegas ‘pastores substitutos’ na recém-fundada Escola de Teologia, era claro que nós já não éramos novatos na compreensão e no serviço do evangelho. Mas todos ficamos gratos de afinal podermos dedicar o devido tempo a um estudo aprimorado da Bíblia e das coisas da fé.”

Aqui cessa o depoimento pessoal do Pastor Dr. Lindolfo Weingärtner e eu continuo com o relato de aspectos da sua vida e obra, em cuja reconstrução me ajudaram a filha Ruth e o filho Martin, aos quais agradeço cordialmente. Devo dizer que a respeito de algumas datas não houve unanimidade, ou seja, podem ter ocorrido pequenos desvios, pelos quais, de antemão, peço escusas.

De volta a São Leopoldo, o nosso homenageado integrou a turma dos primeiros alunos da Escola de Teologia, que havia sido criada pelo Pastor Hermann Dohms, no dia 26 de março de 1946 (portanto, 55 anos atrás), evento que estamos celebrando no dia de hoje. Três anos mais tarde, Lindolfo Weingärtner integraria a primeira turma de formandos da Escola de Teologia. Tratava-se, na verdade, da primeira turma de formandos em teologia da IECLB em terra brasileira, depois de mais de 120 anos de presença luterana no Brasil. Menciono alguns daqueles primeiros formandos: Erdman Götz (recentemente falecido), Edgar Liesenberg, Hans Günther Naumann, Albino Trein, Lindolfo Weingärtner e Hans Blümel, todos com uma folha invejável de serviços prestados à causa do evangelho. Sei que, por motivo de doença, alguns desses pioneiros não puderam se fazer presentes hoje. Os que estiverem aqui, eu gostaria de apresentar nesse momento.

Caro pastor Lindolfo Weingärtner, tenho certeza que corresponde ao seu espírito de grandeza, se eu digo que, ao homenagear o senhor, a EST está, neste ato, também homenageando os seus colegas de turma, a primeira geração de pastores da IECLB formada no Brasil.

Em 1947, Pastor Lindolfo, o senhor se casou com Margarida Elisabeth Hatzky, que viria a ser a mãe dos seus quatro filhos. O local do nascimento dos seus filhos marca as estações da sua passagem como pastor em diferentes localidades. Assim, o seu filho mais velho, Martin, nasceu em Ituporanga, durante os anos do seu pastorado ali (1948-50); seu filho Walter nasceu na época em que o senhor foi diretor do Colégio Evangélico de Panambi, entre os anos de 1950 e 1952; sua filha Margret nasceu em Itoupava Central, Blumenau, durante o exercício do seu pastorado ali nos anos de 1953 a 1955; finalmente a sua filha Ruth viria a nascer em Brusque, onde o senhor atuou entre os anos de 1956 a 1960.

Em 1961 o senhor recebeu o chamado para São Leopoldo, como professor da Faculdade de Teologia, vindo a integrar o primeiro corpo docente, em tempo integral, desta casa. Dos cinco professores, na época, o senhor era o único brasileiro, sendo que, como alemães, os demais ministravam suas aulas em língua alemã. Durante quase uma década o senhor foi professor de teologia prática nesta casa, e isso numa fase difícil, em que poucos valorizavam essa disciplina. O senhor ministrava homilética, liturgia, catequética e poimênica. E quem olha a lista das suas publicações verá que, já naquele tempo, o senhor tinha uma visão muito lúcida dos temas que ainda hoje continuam relevantes e atuais na área da teologia prática. Folheando a revista Estudos Teológicos topamos com artigos seus enfocando temas como:

Gesto e oração. Um estudo sobre a razão de ser de ritos e gestos cerimoniais no culto cristão” (1961); “A estrutura diacônica da comunidade” (1964); “A igreja no mundo” (1965); “Culto e missão” (1968). Em 1983, como que pressentindo a importância que o tema viria a ter na IECLB nos dias de hoje, o senhor escreveu um artigo com o título “Identidade Luterana”, cuja leitura é altamente recomendável.

Durante os anos da sua atuação na Faculdade de Teologia, mais precisamente nos anos de 1966 até meados de 1969, o senhor acumulou a função de professor com a de diretor desta casa. Na oportunidade, o senhor sucedeu o saudoso pastor e ex-presidente da IECLB, D. Ernesto Schlieper, no cargo. Imagino que alguns dos cabelos brancos que o senhor ostenta hoje tenham suas origens naqueles anos! Foram anos de transição de uma instituição com um rosto germânico para uma instituição em busca de identidade brasileira. Apesar do acúmulo de funções que pesava sobre os seus ombros, o senhor sempre encontrou tempo para os estudantes. Assim, o senhor foi alguém que acolheu a nós, um pequeno punhado de alunos que não vínhamos do Instituto Pré-Teológico, e nos reuniu num das salas da antiga biblioteca (que ficava defronte a esta capela) para ministrar aulas de grego. Também não esqueço de uma oportunidade em que o procurei para lhe dizer que o estudo de teologia estava me trazendo dúvidas de fé, a ponto de não ter mais certeza da minha vocação para o pastorado. Após me ouvir, o senhor me animou a continuar os estudos, na confiança de que a crise que eu enfrentava era normal e que iria contribuir para o meu amadurecimento espiritual. E o senhor estava certo. Em outras palavras, além de professor, o senhor foi um pastor para mim e para muitos outros estudantes.

No final dos anos 60, o senhor conclui o seu doutorado pela Universidade de Erlangen, na Alemanha. Sua tese saiu publicada sob o título “Umbanda, cultos sincretistas no Brasil – um desafio para as igrejas cristãs”, um tema, aliás, com que poucos na IECLB se ocupavam na época

Mas, ao lado da pesquisa e da docência, a sua vocação primeira continuou sempre sendo o ministério da pregação. E, por isso, não surpreende que em 1972 o senhor tenha voltado ao pastorado, desta feita em Joinville, onde permaneceu até 1975. Aposentado por motivos de saúde precária, o senhor foi morar em Brusque. Contudo, devido à doença da sua esposa, Dona Margarida, decidiram morar com o filho Martin, em Ituporanga, onde ela viria a falecer em 1989. Em 1991, o senhor contraiu matrimônio com a senhora Erna Joenk, que nos honra com a sua presença, e voltou a morar em Brusque, onde reside até hoje.

O P. Lindolfo, quer na ativa quer na aposentadoria, sempre gostou de escrever. Destaco algumas áreas e alguns gêneros literários mais importantes: (1) livros e artigos teológicos que deixam entrever a sua paixão pela interpretação das sagradas escrituras e o seu profundo compromisso com a tradição luterana. Como exemplo, menciono o comentário sobre Filipenses, o comentário sobre o Catecismo Menor de Martin Lutero (O que eu creio) e um livro sobre as 95 teses de Lutero; (2) poemas, contos e meditações com acento na edificação na fé. Como exemplos, cito “Prática da esperança” e “Sob o sinal da aliança”. Nesse gênero, talvez ainda possa ser incluído o sermonário para o lar cristão, publicado sob o título Lançarei as redes (alguns livros foram publicados também na Alemanha); (3) no gênero romance, ele publicou Tempo de plantar; (4) o P. Lindolfo tem se destacado também na área da hinologia. Mais de 20 hinos do hinário oficial da IECLB Hinos do povo de Deus foram traduzidos do alemão pelo P. Lindolfo e, pela minha contagem, pelo menos 15 hinos do HPD são de sua própria autoria; fui informado que também em hinários que circulam na Alemanha há hinos de sua autoria.

Nos últimos anos, o P. Lindolfo tem ministrado aulas no CETEOL, em São Bento do Sul, e no Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba, além de continuar sendo um pregador e conferencista bastante requisitado.

Eu finalizo minha apresentação pessoal e acadêmica do P. Dr. Lindolfo Weingärtner e dos motivos que levaram a EST a lhe outorgar o título de Professor Emérito, pois sei bem que ele não é afeito a muitas homenagens que destacam a realização humana. Tudo o que fez, tudo que pesquisou, tudo o que escreveu, toda contribuição que deu a Escola Superior de Teologia, tudo o que representou como figura de integração teológica na IECLB, o fez movido tão-somente pela graça de Deus, como decorrência da sua vocação de pregador apaixonado do Evangelho de Jesus Cristo. A Ele, ao Senhor da Igreja, tão-somente seja a glória e a honra para sempre. Amém.



São Leopoldo, 28 de março de 2001

Prédica sobre Nm 13.30-14.8, proferida pelo P. Dr. Lindolfo Weingaertner no culto realizado na Capela da Escola Superior de Teologia, em 28.3.2001.

Irmãos em Cristo!

Semanas atrás, ao convidar-me a assumir a pregação neste culto, o reitor da EST, Lothar Hoch, escreveu-me que a escolha do texto ficaria a meu próprio critério. Em minha leitura bíblica diária, nestes dias, eu estava lendo o livro de Números. Folheando o livro, a um dado momento fui cativado por uma passagem constante nos capítulos 13 e 14. E, de repente, veio à minha lembrança uma cena que se passou há exatos 53 anos atrás, no auditório do IPT, onde foi celebrada a despedida da primeira turma de formandos da novel Escola de Teologia (dos seis formandos, três já faleceram: Edgar Liesenberg, Erdmann Götz e Hans Blümel).

Lembrei, e lembro ainda, com nitidez como, a certa altura do programa, levantou-se nosso professor de homilética, o pastor Kurt Warnke, de Dois Irmãos (ele vinha por vezes de botas para as aulas, como para documentar que seu serviço pastoral nos morros de Dois Irmãos e suas preleções homiléticas eram farinha do mesmo saco), abriu sua Bíblia e começou a ler pausadamente os dois capítulos mencionados de Números, do começo até o fim. Depois de findar a leitura, voltou a tomar lugar em sua cadeira, sem fazer nenhum comentário.

Lembro que foi um silêncio meio constrangedor que se seguiu à leitura, mas posso dizer que esqueci o conteúdo de todos os outros discursos que foram feitos naquela noite, inclusive o do meu, mas não pude mais esquecer aqueles dois capítulos lidos pelo professor. E ao relê-los, três semanas atrás, sabia que este seria o texto do meu sermão, no dia de hoje.

Passarei a ler a passagem central, Números 13.30-14.8.

O povo de Israel tinha saído da casa de escravidão, no Egito, e se pusera a caminho da terra prometida. Foi o seu Deus que os libertara dos chicotes dos fiscais egípcios e de uma vida humilhante que não oferecia mais nenhuma perspectiva, nem para eles nem para seus filhos. Deus lhes havia dado um futuro, arrancando-os de sua vidinha de escravos já acomodados com a situação. Por seu poder, arrancara-os da casa da servidão e através da pregação de seus servos Moisés e Arão lhes havia anunciado uma terra em que fluía leite e mel, terra em que não haveria mais escravidão mas sim, justiça e paz, a terra da promissão, situada além do deserto.

E agora, já nos limites do lugar que seu Deus lhes prometera, eles mandam um representante de cada tribo para espionarem a terra, assim que possam planejar a estratégia da conquista. Os emissários voltam – e só dois deles, Josué e Caleb, mostram-se animados e prontos para empenhar-se pela conquista; os demais voltam cabisbaixos, arrasados pelo que viram e ouviram. A terra é boa e fértil, dizem, mas os seus habitantes acham-se firmemente instalados em cidades fortificadas. São gente alta e forte, filhos de Enaque, verdadeiros gigantes, frente aos quais eles se sentiram como gafanhotos. E sentiram que para aqueles gigantes, eles igualmente não passavam de gafanhotos. E começaram a difamar a terra que Deus lhes prometera.

E então começou o grande lamento generalizado, a cantilena do desespero e da frustração – e isso num povo que Deus destinara para cantar cantos de alegria e louvor: Ó, se tivéssemos ficado no Egito! Aí tínhamos de tudo, panelas cheias de carne, cebolas e alho à vontade, peixes que pegávamos no rio,... Ó, se tivéssemos morrido no Egito, ou tivéssemos morrido aqui no deserto! Nós abandonamos o que tínhamos, estamos sem passado, portanto, e já não cremos no futuro. O futuro só nos mete medo. Para que nos serve o presente? Vamos romper com aquele Moisés que se diz profeta de Deus, vamos voltar ao Egito, para o que der e vier!

Nós sabemos, digo isso especialmente aos meus irmãos teólogos, que não nos é lícito interpretar o Antigo Testamento simplesmente espiritualizando os eventos e afirmando que não passam de figura para o novo povo de Deus que Jesus Cristo salvou. As coisas são menos patentes, menos racionalmente demonstráveis. Eu gostaria de comparar o Antigo Testamento com uma caixa de ressonância qualificada: Um piano, quando levantamos sua tampa superior, expondo suas cordas, responde ao tom da voz humana ou à de outro instrumento: responde o dó com o dó e o sol, a oitava e a quinta e com outros tons afins... É uma ressonância qualificada, que indica que são ondas sonoras afinadas no mesmo padrão musical, obedecendo as mesmas leis de harmonia.

Assim, ao encostarmos o ouvido (ou o estetoscópio teológico) no nosso texto, nós, que somos o povo de Cristo, escutamos tons que nos são familiares no evangelho, que fazem vibrar as cordas de nosso próprio coração, que igualmente não passa de caixa de ressonância qualificada pela pregação que ouvimos e pelos feitos que Deus tem realizado em nossa vida.

O que estava errado com aquele povo frustrado e revoltado? Por que eles preferem voltar a um passado sem esperança a lutar por um futuro luminoso? Eles tinham chegado a seu “limit”? Estavam esgotados do serviço que Deus exigia deles? Não. Os emissários voltavam da terra prometida com as mãos cheias de frutos da terra. O que lhes faltava era fé. Fé no Deus que salva. Fé no poder e na graça do Deus Salvador. Nada mais. Esta falta de fé os paralisava, turbava-lhes a visão para o passado, enchia-lhes o coração de temores frente ao futuro.

Todos tinham sido objetivamente salvos por Deus, e agora eles põem em jogo sua salvação agindo como se não tivesse havido a noite do pasha e a passagem pelo Mar Vermelho e a coluna de fogo a conduzi-los pelo deserto. Teologia da prosperidade, sim. Mas logo que o compromisso com Deus virava serviço e luta, aí sua fé desaba.

Só Josué e Caleb levantam a sua voz e dizem: “A terra é boa, se o Senhor nos for gracioso, nós a vamos conquistar. O Senhor é conosco. Não temais a ninguém!”

Aquele jovem Josué – ele era ajudante de Moisés, destinado a ser seu sucessor. O nome original dele tinha sido Hoshea, Oséias. Hoshea significa “salvação”. Moisés mudara-lhe o nome para “Josué”, “Deus é a salvação”. Interessante: ele não mudou o nome nada bonito de Caleb, que significa “cachorro”; um cão de guarda, que latia no momento certo cuidando daquele rebanho difícil, parece-lhe ter sido até uma semântica aceitável, mas mudou o nome bonito e bem sonante de Hoséias - Salvação.

Podemos imaginar como um dia Moisés chamou a si aquele ajudante seu, destinado a ser o futuro líder de Israel: “Oséias, perdoe-me, mas vamos ter que mudar o seu nome. Um líder do povo de Deus não pode ter um nome assim: Salvação. Você não é salvação nenhuma. Seria o sinal errado a dar. Vou te dar um nome que não deixa nenhuma dúvida a respeito de tua tarefa. Tu vais chamar-te Josué, ‘Deus salva’. Teu nome será teu programa, será o conteúdo de tua pregação.”

Josué e Caleb representavam a nova geração de líderes de Israel. Eram o theologischer Nachwuchs de Moisés e Arão, por assim dizer. Moisés já tinha reestruturado o povo, a conselho do seu sogro Jetro, decentralizando a administração e delegando responsabilidades. Tinha criado os seus sínodos, com suas diretorias cumprindo o seu papel. Mas estrutura não é tudo, no povo de Deus. O que realmente caracteriza o povo de Deus é a liderança exercida através da palavra de Deus, em todos os níveis.

Moisés estava preparando Josué e Caleb para a sua tarefa. Muita coisa dependeria deles. O povo de Deus sem liderança baseada na palavra profética perderia o caminho. Moisés não poupara os dois. Não os mantivera numa camarinha separada para se prepararem para suas futuras funções. Certamente os iniciou na doutrina de Israel, mas não lhes fez a cabeça com segredos destinados só para eles. Como faria Jesus mais tarde com os discípulos, não os separou da comunidade. Mandou que acompanhassem os outros emissários à terra a ser conquistada, expusera-os a idéias estranhas, tiveram que enfrentar os mesmos perigos que os outros enfrentavam, expusera-os ao perigo de perderem a fé e a coragem, assim como seus companheiros perderam.

Nós todos não somos muito semelhantes àqueles espias que voltaram frustrados da expedição que fizeram à terra da promissão? Iniciamos a marcha esperançosos, com alegre expectativa, com a cabeça cheia de ideais de como transformar o mundo em um lugar melhor, em um lugar de justiça e de harmonia fraterna. E então descobrimos os gigantes, os filhos de Enaque. E aos seus olhos nos sentimos como gafanhotos, desprezíveis para nós mesmos como também para eles.

Comparamos o entusiasmo de 50.000 fãs de futebol reunidos num estádio com um grupinho de jovens cristãos ou com uma comunidade que se reúne num lugar que parece apartado das coisas grandes e importantes que acontecem no mundo. Tomamos conhecimento, no noticiário, de eventos como a love parade, em Berlim, ou do Festival de Rock, no Rio. Ficamos assustados com o poder econômico manipulado pelos gigantes multinacionais (os “poderes ocultos” de Jânio) e outros gigantes, filhos de Enaque. A globalização, o avanço da tecnologia, a poluição, as perspectivas nada otimistas dos futurólogos. Parece um futuro com céu de chumbo, dominado por gigantes funestos.

E, olhando nossa própria pequenez, vendo-nos rodeados de gigantes, de repente aos nossos olhos não passamos de gafanhotos. De baratas que alguém poderá esmagar impunemente com o pé. E, no momento em que aos nossos próprios olhos nos apequenamos, frustrados, vendo-nos como gafanhotos desprezíveis, também o seremos aos olhos dos filhos de Enaque. Eles sabem muito bem distinguir urna coisa da outra – um cristão que crê no poder de seu Senhor e uma criatura que tem o nome de cristão, mas que se apequena em seu canto, como a pedir desculpas pela própria existência.

Josué: seu nome foi o conteúdo de sua pregação, foi seu programa de ação. Davi, mais tarde, enfrentaria o gigante Golias com o mesmo programa. Ele não se viu como gafanhoto, nem se considerou a si mesmo “salvação”, mas como “Deus salva” e assim disse na cara do gigante: “Tu vens a mim armado até os dentes, eu venho a ti em nome do Deus verdadeiro que tu blasfemaste.” E, usando sua funda, derrubou o gigante.

Lutero canta: “A minha força nada faz, sozinho estou perdido. Um homem a vitória traz, por Deus foi escolhido. O rei do mal, com força infernal, não dominará, já condenado está por uma só palavra.”

Por uma só palavra. Josué. Jesus. Deus salva. Não é nenhuma construção teológica. É a ressonância da ação de Deus na história de seu povo. Ação que pede a nossa fé – e a nossa obediência.

No povo de Jesus Cristo, os fatos objetivos da salvação aconteceram, graças a Deus. Cristo morreu e ressuscitou por nós. Nós fomos batizados em seu nome, fomos iniciados no evangelho, confirmados, experimentamos a vivência cristã dentro da comunidade, muitos de nós chegamos a estudar teologia, preparando-nos para o ministério, ou para a docência. É a mesma situação do povo de Israel no deserto. Qual a razão de nosso desânimo frente ao futuro? Por que, bem no íntimo, muitos sentem a tentação de voltarem a um passado sem fé e sem compromisso, mesmo que saibam que será uma volta à escravidão? Qual o motivo da inércia e da falta de ânimo de grande parte do povo de nossa igreja?

A resposta dos profetas e dos evangelistas é uma só: desânimo é falta de fé. Falta de fé de gente que foi batizada, confirmada e catequizada. De fé no Deus que salva. Não na igreja que salva. No Deus que salva. Não em um líder carismático que se identifica com “salvação”.

Nós, os servos de Cristo, não somos nem gafanhotos nem somos salvação. Somos os emissários do Salvador. “Só pela fé, só pela graça de Deus, só por Cristo”, diz Lutero, que redescobriu aquela dimensão fundamental da Bíblia. “Se o senhor se agradar de nós, então nos fará entrar nesta terra”, diz Josué.

Sentimos a ressonância? Não só a ressonância decorrente da lógica interna que existe entre o Antigo e o Novo Testamento, mas a ressonância em nosso próprio coração? Deus quer a nossa fé pessoal. Deus quer o nosso compromisso com sua ação salvadora. Deus quer que nós, teólogos e ministros, sejamos Josués, em meio a um povo muitas vezes inerte e voltado a um passado sem perspectiva. Deus quer que não tenhamos medo de gigantes. Deus não quer que nos sintamos como gafanhotos desprezíveis diante deles, mas que os enfrentemos com as armas que ele nos dá: a sua palavra e a fé na salvação em Jesus Cristo.

O pastor Kurt Warnke, que, mais de meio século atrás, deu-nos aquele texto do livro de Números a título de provisão para nossa caminhada de ministros de Deus, bem sabia o que estava fazendo. Ele, já há algum tempo, descansa da sua luta, como a quase totalidade da primeira geração de professores da Escola de Teologia. (Parece que só o colega Bertholdo Weber ainda continua entre nós). Eu queria passar o recado do professor adiante, em nome e a mando do DEUS SALVA que encerra toda a nossa esperança: Jesus Cristo, nosso Senhor.