Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 3, p. 38-52

Confessionalidade luterana e renovação litúrgica1
Romeu Ruben Martini

Resumo
No primeiro semestre de 2001, o Centro Acadêmico Dr. Ernesto Schlieper, da Escola Superior de Teologia, realizou uma Semana Acadêmica sob o tema
Confessionalidade luterana em vista do pluralismo religioso. Como contribuição para esse estudo e o debate, a palestra que segue apontou componentes da confessionalidade luterana que caracterizam o processo de renovação litúrgica em andamento na IECLB e a ordem de culto aprovada no seu último concílio, em outubro de 2000. Quatro são os componentes destacados: a renovação litúrgica em si, a cautela e os cuidados necessários nessa renovação, a adoção de uma ordem de culto e o ofertório, um dos elementos dessa ordem.

Introdução

Em sua assembléia geral no ano de 1977, a Federação Luterana Mundial (FLM) decidiu aprofundar a reflexão sobre a prática de culto das suas igrejas2. Por isso mesmo, de lá em diante, muitas iniciativas foram tomadas em termos de liturgia no seio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)3. O fruto mais recente desse processo na IECLB foram a aprovação e a adoção de uma ordem de culto, no Concílio Geral, em outubro de 2000.

Como contribuição à reflexão sobre confessionalidade luterana em vista do pluralismo religioso, tema da Semana Acadêmica do Centro Acadêmico da Escola Superior de Teologia, realizada no primeiro semestre de 2001, a presente palestra aponta componentes da confessionalidade luterana que caracterizam o processo de renovação litúrgica em andamento na IECLB e a ordem de culto aprovada no concílio. Dentre eles, destacamos quatro: a renovação litúrgica em si, a cautela e os cuidados necessários nessa renovação, a ordem de culto e o ofertório.

Componentes da confessionalidade luterana no processo de renovação litúrgica
e na ordem de culto da IECLB

1 – A renovação litúrgica como sinal de confessionalidade

Como igreja de confissão luterana, a IECLB é parte da ecclesia reformata. É uma igreja nascida da Reforma. É um ramo do tronco da Igreja ocidental, fruto de um movimento que apontou a necessidade de mudanças na Igreja.

Ao mesmo tempo, a IECLB é ecclesia semper reformanda. Lembrando a 62ª das 95 teses de Lutero, segundo a qual “o verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus”, Martin Dreher afirma que “quem quiser argumentar com essa tese e dizer que a Reforma colocou o Evangelho novamente em seu devido lugar só o poderá fazer, caso entender a Reforma não como um acontecimento encerrado a ser festejado, mas como algo que tem que acontecer sempre”4. Nas raízes da Reforma do século XVI está a convicção de que nada é estável, perene, afora Deus e sua Palavra. O principal protagonista da reforma, Martim Lutero, demonstrou isso quando propôs e realizou mudanças na liturgia que ele conheceu e celebrou. Portanto, o processo de renovação litúrgica na IECLB é sinal claro da confessionalidade que a identifica e mantém ligada com suas raízes, bem como com dezenas de outras igrejas no mundo5. A IECLB se entende como igreja constantemente sujeita a reformas, também quando o assunto é liturgia.

2 – A cautela e os cuidados na renovação litúrgica como sinais de confessionalidade

No todo, o processo de renovação litúrgica em andamento na IECLB revela avanços significativos. Ainda assim, ao percorrer os trilhos dessa renovação litúrgica, a partir dos impulsos da FLM em 1977 – o que não exclui passos dados anteriormente com esse objetivo –, constata-se que aconteceram atropelos, tropeços e descuidos. Como exemplos disso, pode-se citar a ênfase dada, na década de 80, nas chamadas prédicas proféticas, em detrimento de uma compreensão mais abrangente de culto. Com o desejo autêntico de renovar o culto, a liturgia passou a ser sinônimo de pregação profética6. No mesmo período, com ênfase teológica outra que a das prédicas proféticas e da teologia que a elas deram sustentação, um grupo de obreiros e leigos constituía o chamado movimento evangelical, que tentava resgatar valores do pietismo do século XVIII. Em termos de liturgia, esses dois grupos desconsideravam o culto como ação que segue ritos que constituem a identidade da comunidade evangélica de confissão luterana.

Como mais um sinal claro desse descuido litúrgico, pode-se citar ainda a decisão de enviar às comunidades da IECLB, em 1991, o Prontuário Celebrações do Povo de Deus (CPD)7. A direção da igreja quis que CPD servisse como recurso para balizar a ação litúrgica das comunidades e para estabelecer uma identidade litúrgica. Mas o simples envio desse caderno, sem preparo preliminar e sem acompanhamento didático, frustou os objetivos propostos. Mais do que isso, em alguns casos resultou na abolição do restante da liturgia conhecida pela comunidade. E o que esses atropelos, tropeços e descuidos têm a ver com confessionalidade luterana?

O fermento da Reforma de 1517 logo alcançou o culto. No ímpeto de mudar e romper com o romanismo, Karlstadt, pastor em Wittenberg, em 1521, celebrou o culto sem as vestes litúrgicas, não falou a Oração Eucarística (nem mesmo as palavras da instituição) e deu pão e cálice na mão dos leigos. Isto resultou em grande alvoroço. Lutero, em contrapartida, observou que era necessário haver cautela com tais mudanças. Do contrário, a fé (que deveria ser fruto do anúncio do Deus gracioso) seria compreendida como nova regra cultual, obedecida por lei8.

O mesmo se deu no contexto do iconoclasmo. Líderes de comunidades tiraram as estátuas das igrejas por meio da violência. Lutero censurou os que assim procederam. Entendeu que, por mais questionável que fosse a adoração de ícones, devia-se levar em consideração as pessoas para as quais essas imagens eram um elemento importante de sustentação da fé9. Qualquer mudança que se quisesse realizar, por mais justificável que fosse, precisava, de acordo com Lutero, de cautela e deveria levar em consideração especial os ainda fracos na fé, aquelas pessoas que não haviam compreendido as razões da mudança de alguma das práticas segundo as quais tinham sido educadas10. Mais uma vez, também neste caso, o meio para alcançar uma mudança seria o ensino do Evangelho11.

Cautela e cuidado num processo de renovação litúrgica podem parecer elementos secundários. Porém, tato, cuidado e amor pastoral pelos membros de uma igreja em contexto de mudança e renovação revelam-se não apenas como elementos úteis, mas imprescindíveis. São, pois, características da confessionalidade luterana.

3 – Ordem de culto como sinal de confessionalidade

A idéia de que a Igreja tenha uma ordem de culto ou estrutura de culto encontra resistência. Para alguns, ordem e estrutura traduzem “engessamento”, “receituário”, “coisa pronta”. Para outros, ordem e estrutura, ligadas a idéia de resgate ou volta às origens, indicam tentativa inútil de dar vida a algo que está definitivamente morto. Para outros ainda, a proposição de uma ordem de culto para a Igreja revela falta de sensibilidade diante da diversidade – teológica, geográfica, social, cultural – que existe na Igreja. Paradoxalmente, poucas são as pessoas que não manifestam preocupações em busca de mudança e sede por renovação litúrgica.

Também aqui comunidades oriundas da Reforma têm muito a aprender de Lutero. Afinal, ele nunca pretendeu apresentar uma ordem de culto sua, totalmente nova, desconsiderando aquela que a Igreja conhecia e usava e que ele mesmo seguiu com absoluto rigor ao ser ordenado sacerdote. Admitiu que "o culto como está em uso tem sua genuína origem cristã"12.

Na elaboração da sua Missa e ordem do culto alemão, o reformador declarou que a ordem de culto poderia servir à unidade da Igreja. Por isto, "seria bom se o culto fosse uniforme numa mesma província"13. Mas novamente insistiu que isso não poderia ser instituído por lei14. Ele até admitiu a possibilidade da coexistência de mais de um rito. Importa, porém, dizer com todas as letras que Lutero fora instado a propor uma ordem de culto para superar a confusão implantada pelos que haviam adotado o caminho da violência (e do “fazer por conta”) no processo da Reforma15.

O respeito à ordem de culto herdada não impediu, todavia, que o reformador iniciasse o primeiro de seus textos sobre o assunto, denunciando os três grandes abusos que haviam sido introduzidos na "missa". Segundo Lutero, (a) a Palavra foi silenciada, (b) em seu lugar se infiltraram fábulas e mentiras e (c) realizava-se o culto como obra. Partindo daí, Lutero ensinou que a comunidade devia reunir-se para ouvir a Palavra de Deus (lida e explicada), para orar (agradecer e honrar a Deus e pedir pelos frutos do Evangelho), louvar e cantar16. Sem abolir a base da liturgia herdada, Lutero propôs mudanças. Renovou.

Nesse escrito, Lutero invocou a experiência da comunidade dos cristãos no tempo dos apóstolos para defender a centralidade da Palavra de Deus no culto. Para ele, o culto justifica-se somente se a Palavra for pregada17. Insistiu que, por meio da leitura diária da Palavra de Deus, os cristãos tornar-se-iam "conhecedores, versados e entendidos na Escritura"18. Nessa época, o "sacramento" (ceia do Senhor)19 ainda era visto como opcional nos cultos. "Podemos dispensar tudo, menos a Palavra."20 Em suma, com a primeira manifestação sobre a ordem do culto, Lutero procurou afirmar a Palavra como critério determinante daquilo que a comunidade fazia quando se reunia para o culto.

Pouco tempo depois, no mesmo ano de 1523, além de insistir no resgate da Palavra na liturgia – devolvendo-a para a ordem de culto herdado pela Igreja –, Lutero viu-se forçado a interferir na estrutura do culto propriamente dita. E isso teve enorme repercussão sobre a mesma. Ao apontar o que deveria permanecer nessa estrutura e o que dela precisaria ser retirado, o critério básico continuou sendo a Palavra; aquilo que ajuda a ensinar a fides in Christum21. Mas houve outro critério fundamental que Lutero defendeu, norteador da reforma do culto, bem como da Reforma no seu todo. Fazendo referência ao que dissera em Von Ordnung Gottesdienst, reiterou que não quis transformar coisas antigas em novas. Insistiu que qualquer mudança desejada deveria ocorrer com cautela, sem violência, como demonstração de amor aos fracos na fé, e para não enveredar pelo mesmo caminho daqueles que em tudo querem novidade, mas o fazem sine fide, sine mente22. Ordem de culto não poderia ser modificada ou instituída por "lei". Mais importante deveriam ser a preservação da integridade das benedictionis verba ("palavras de bendição" = palavras de instituição) e o zelo para que as pessoas participem da missa (aqui, claramente = ceia do Senhor) com fé23. Se, pois, num primeiro momento, Lutero insistiu no lugar da Palavra no culto, logo ele recuperou o espaço que a Ceia do Senhor também deveria receber.

Na Formula Missae, Lutero apresentou uma estrutura mais elaborada para o culto. Seus elementos centrais – mantidos da liturgia herdada – são: Intróito com salmo, Kyrie eleison, Gloria in excelsis, oração de coleta, leitura da epístola, canto (Graduale), leitura do evangelho, Credo, pregação, preparo do pão e vinho, (resquícios da) Oração Eucarística (saudação, prefácio, sanctus, palavras de instituição), elevação, Pai-nosso, gesto da paz, Agnus Dei, comunhão, oração, envio, bênção24.

Lutero viu a importância da ordem de culto que a Igreja do seu tempo carregava como herança das primeiras comunidades cristãs. Nem por isso ele simplesmente a assumiu, como se fosse instituição divina. A mesma afirmação também pode ser feita de forma inversa. As críticas e as intervenções “cirúrgicas” de Lutero à e na ordem de culto da Igreja não resultaram na sua abolição, tampouco na invenção de algo novo, copiado de algum outro movimento ou grupo. Lutero soube distinguir entre aquilo que na liturgia do culto é essencial, que promove Cristo, e aquilo que é secundário, menos relevante, ou que obscurece a Boa Notícia do Evangelho.

4 – Ofertório como sacrifício, um elemento confessional da ordem do culto luterano

Desde os primórdios do cristianismo, o termo tusía (sacrifício) exprimia o sacrifício de louvor da Igreja em resposta ao sacrifício de Cristo em favor da humanidade25. Noutras palavras, tusía, no Novo Testamento, traduz o sacrifício de Cristo por nós e o sacrifício de louvor da Igreja. A carta aos Efésios, por exemplo, apresenta o caráter sacrificial como auto-oferecimento, segundo o exemplo do próprio Jesus. "Andai em amor, como também Cristo vos amou, e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício [tusian] a Deus em aroma suave" (Ef 5.2). Na carta aos Hebreus, aparece claramente a tradição judaica do sacrifício como expressão de louvor e de compromisso com a causa pela qual Jesus se ofertou. "Por meio de Jesus, pois, ofereçamos (anaféromen)26 a Deus, sempre, sacrifício [tusían] de louvor" (13.15). E "não negligencieis igualmente a prática do bem e a mútua cooperação; pois com tais sacrifícios [tusian] Deus se compraz" (v. 16).

As duas dimensões do sacrifício eram expressas por meio da palavra tusía27. Com o passar do tempo, outros significados foram acoplados a esse termo, ao lado da definição básica. E a Igreja da Idade Média desvirtuou totalmente o conceito tusía e, por conseqüência, a própria missa. Fundamentalmente, a Igreja reintroduziu na missa a tradição vetero-testamentária dos cultos sacrificiais, segundo a qual se acreditava cumprir a exigência "sejam santos" (Lv 11.45) por meio de sacrifícios apresentados pelos sacerdotes, seguindo normas de conduta piedosa28. Segundo a doutrina católico-romana no período medieval, o sacrifício da missa passava a ser repraesentatio (representação) do sacrifício de Cristo29. Transformara-se, assim, a idéia original de sacrifício. Uma oferta, no caso, não era mais de gratidão pelas dádivas de Deus em Cristo, mas obra com a qual se queria influenciar a Deus ou barganhar junto a ele.

Na sua crítica a essa verdadeira inversão30 do que deveria ser a missa, Lutero insistiu nas "palavras de Cristo" ("dado por vós")31. Elas são "o ponto principal da missa", o "fundamento". Expressam claramente que Deus agiu primeiro e fez uma promessa32. Revelam que Deus deu o seu Filho e "nos" redimiu de pecado, morte, diabo, mal. Por meio daquilo que Cristo fez, Deus demonstrou sua bondade e perdão. Cristo conquistou isso para nós por meio do seu sacrifício33. Conseqüentemente, entendeu o reformador, o sacrifício de Cristo dispensa o ser humano de querer conquistar o que Deus por meio de seu Filho já concedeu34. Em lugar desse esforço, Deus requer a fé e um coração grato35. Em resposta ao beneficium36 concedido, Deus espera um coração confiante.

Lutero fez essa crítica tão contundente à prática do sacrifício propiciatório. Mas não parou na crítica! Há um dado fundamental a ser considerado e recuperado na reflexão teológico-litúrgica quando se aborda o tema "sacrifício" à luz da Reforma (e esse se revela como componente fundamental da confessionalidade luterana no processo de renovação litúrgica na IECLB). Apesar da crítica, Lutero admitiu ser possível celebrar e expressar o sacrifício em dois sentidos, os quais estão entrelaçados.

(a) De um lado está o sacrifício de Cristo "por nós". Trata-se do evento fundante, da ação primeira, isto é, do sacrifício único de Cristo na cruz. Nele Deus concedeu um beneficium: "o perdão de todos os pecados" e vida eterna37. E é na missa – instituída por Cristo e que é constituída por "apenas ação de graças a Deus e o uso do sacramento"38 – que a comunidade cristã celebra, experimenta, reatualiza esse benefício, o qual tem por base as palavras da instituição. Elas são o fundamento. Elas revelam que Deus foi o primeiro a agir. Elas declaram que Deus se antecipou "a todas as obras e pensamentos" e fez "uma promessa claramente expressa em palavras"39. O sacrificio foi único. A comunidade celebra a memória desse sacrifício40.

(b) Do outro lado está o sacrifício de louvor e gratidão da comunidade. Ou seja, o sacrifício de Cristo "por nós", aceito com fé, resulta numa resposta, em forma de palavras e atitudes.

Esta mesma fé e confiança far-te-á alegre e despertará um amor desobrigado a Cristo, com ele começarás a levar com prazer uma vida correta e boa, e evitarás de coração o pecado. (...) O gosto é trazido pela fé que crê e confia no testamento41 e na promessa42.

A resposta da fé não é um sacrifício deturpado43, que nega o sacrifício de Cristo ou que o substitui. A resposta autêntica é a "gratidão e louvor a Deus", através "do alimento e da oração coletados, com o que se agradece a Deus"44.

Por isso, a missa não quer e não pode ser designada nem ser um sacrifício por causa do sacramento, mas por causa do alimento e da oração coletados, com o que se agradece a Deus, e eles são abençoados45.

Nesse sentido é tolerável, sim, de proveito, que designemos a missa de sacrifício46.

Ao insistir que da missa autêntica, que constantemente anuncia e fala da promessa divina, brotam a fé e a ação caritativa47, Lutero recuperou a dimensão do sacrifício enquanto resposta ao que Cristo primeiro concedeu por meio de sua morte na cruz, o seu sacrifício. Segundo B. Lohse, nesse ponto a interpretação de Lutero é agostiniana. Agostinho defendeu o auto-oferecimento da Igreja como sacrifício. Não como "repetição do exclusivo sacrifício da cruz". Mas, "ao rememorar o sacrifício [de Cristo] já sucedido", a Igreja "se oferece a si mesma"48. "Este auto-sacrifício da Igreja se efetua no fato de ela se entregar a si mesma na vida quotidiana, na concretização da comunhão do amor da Igreja."49 É por isso que Lutero fala do sacrifício de gratidão. Nós mesmos nos oferecemos a Deus, de corpo e alma, para que ele nos use no seu serviço50. Rendemos sacrifício de louvor e agradecimento pela sua obra redentora51.

Partindo desse pressuposto, Lutero afirmou que o sacrifício de Cristo por nós seria motivo para (a) a Igreja cessar imediatamente com a repetição do sacrifício exclusivo de Cristo e a conseqüente prática do oferecimento de missas pelos outros52, (b) a Igreja oferecer-se a si própria, "fora da missa", a partir do estímulo mútuo dos que a compõem53.

Embora o Novo Testamento omita conceitos cultuais veterotestamentários, desde os primórdios do cristianismo fala-se da Eucaristia como sacrifício (tusía) e ofertório (prosforá) dos cristãos54. Há setores do protestantismo que tendem a negar esse fato e sua veracidade histórica55. Em assim procedendo, preterem-se dois aspectos. De um lado, esquece-se que a terminologia neotestamentária acerca do sacrifício e do ofertório se distanciou do sacrifício judaico. A oferta e o sacrifício apresentados passaram a ser as orações e o louvor da comunidade. De outra parte, perde-se o dado histórico que a Reforma (Lutero!) não abandonou esse conceito de sacrifício cristão, mas, no confronto das suas disputas com o romanismo, radicalizou-o exatamente no sentido a ele atribuído pela Igreja antiga56. A teologia e a liturgia luteranas têm como seu componente constitutivo o sacrifício realizado em palavra (cantada ou falada) de gratidão, louvor, oração e ação (coleta de alimentos ou toda a ação diaconal da comunidade) e a doação da própria vida. Segundo Schmidt-Lauber, em toda a sua polêmica contra a concepção sacrificial da missa, Lutero nunca negou que o sacrifício faz parte do sacerdócio geral, "mas, sim, [deve ser entendido] como serviço da fé que recebe o dom de Deus no sacrifício de louvor, de graças e oração na entrega corporal"57. Por isso mesmo, segundo Benoit, "sem ele [o sacrifício], nunca poderá haver verdadeira santa comunhão"58.

O que se conclui? Com a mesma veemência que luteranos argumentam em defesa da doutrina da justificação por graça e fé somente – que é, sem dúvida, um dos elementos doutrinários que distingue essa confissão no mercado religioso da época pós-moderna –, é necessário descobrir e reafirmar, também a partir de Lutero, que a fé ativa no amor encontra no ofertório do culto uma das maneiras mais expressivas de se articular. Ademais, é no ofertório que pode ser articulada litúrgica e apropriadamente a dimensão de serviço (diaconia) da Igreja. No ofertório, no sacrifício da comunidade em resposta ao sacrifício remidor de Cristo, pode ser expresso o compromisso radical da Igreja com a vida da gente que a ela cabe pastorear. Ofertório, enquanto elemento da liturgia do culto, é, pois, componente da confessionalidade luterana.

Conclusão

Os componentes da confessionalidade luterana no processo de renovação litúrgica e na ordem de culto da IECLB aqui apresentados não são os únicos. Vale mencionar, por exemplo, a dimensão da ação de graças no culto luterano59, por extensão, o lugar da Oração Eucarística60. Esse resgate, portanto, precisa continuar.

Se confundirmos ordem de culto com rubricismo, com ritualismo, com mera leitura de um manual, podemos nos amparar em Lutero para negar toda proposta que defender a relação entre culto e estrutura litúrgica. Se, porém, enxergarmos nela a herança da Igreja primeva – assim como dela herdamos a Escritura –, uma possibilidade para a unidade da Igreja, podemos afirmar que ordem de culto é um dos componentes centrais da confessionalidade luterana.

1Palestra apresentada na Escola Superior de Teologia em São Leopoldo RS, na Semana Acadêmica, em maio de 2001.

2Eugene L. BRAND (ed.), A liturgia entre os luteranos. Declaração sobre a liturgia Northfield, 1983; Relatório de Tantur sobre Liturgia, 1981. São Leopoldo: Centro de Elaboração de Material, 1985.

3A IECLB constituiu uma Comissão de Liturgia, a qual passou a participar de consultas sobre liturgia (1986); o Centro de Elaboração de Material passou a publicar textos sobre liturgia (conf. nota anterior); a Escola Superior de Teologia criou a cadeira de Culto Cristão; cursos de liturgia foram oferecidos a pessoas leigas e ao quadro de obreiros da Igreja; o Concílio Geral de 1991 decidiu pela criação do Prontuário Celebrações do Povo de Deus; mais recentemente, o Concílio decidiu aprovar uma ordem de culto (10/2000); em julho de 2001, o Instituto Ecumênico de Pós-Graduação deu início ao Mestrado Profissionalizante em Liturgia; a Escola Superior de Teologia criou seu Centro de Recursos Litúrgicos (CRL), que, entre outros, está publicando a revista litúrgica Tear.

4Martim DREHER, A Crise e a Renovação da Igreja no Período da Reforma. São Leopoldo: Sinodal, 1996. p. 13 (Coleção História da Igreja, 3).

5Exemplos de outras iniciativas de Igrejas, inclusive em âmbito ecumênico, com implicações sobre o culto das Igrejas, são a Liturgia de Lima, fruto de reflexões teológico-litúrgicas do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) e os recentes livros de culto de diversas Igrejas, comentados por Paul F. BRADSHAW (ed.), Recent service books. Studia Liturgica, London: v. 31, n. 1, 2001.

6Uma pesquisa dos auxílios homiléticos da série Proclamar Libertação (São Leopoldo, Sinodal) revela essa ênfase.

7CONSELHO DE LITURGIA da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (coord.). Celebrações do Povo de Deus. Prontuário litúrgico da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Ed. prov. São Leopoldo: Sinodal, 1991.

8H. BORNKAMM, Martin Luther in der Mitte seines Lebens. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. p. 419.

9M. LUTHER, Die vierte Predigt am Mitwoche nach dem Sontag Invocavit, 12. März, In: ID., Predigten des Jahres 1522, In: D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1905. v. 10/III, p. 1-64. p. 34, 23 - 35, 26.

10ID., Die erste Predigt, am Sontage Invocavit, 9. März, In: ID., Predigten des Jahres 1522, p. 12, 24-34.

11ID., Von beider Gestalt des Sakraments zu behmen, In: D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar : Hermann Böhlaus Nachfolger, 1907 (v. 10/II), p. 29, 31 - 30, 3.

12ID., Von Ordnung Gottesdiensts in der Gemeine [doravante Von Ordnung Gottesdiensts], In: D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar: Hermann Böhlau, 1891 (v. 12), p. 35, 1-2.

13Província = um senhorio com suas cidades e vilas da redondeza.

14M. LUTERO, Missa e ordem do culto alemão, p. 219. De acordo com M. BRECHT, Martin Luther - Ordnung und Abgrenzung der Reformation 1521-1532. Stuttgart: Calwer Verlag, 1986 (v. 2), Lutero apresentou e exercitou a Deutsche Messe pela primeira vez em Wittenberg, no dia 29.10.1525. Introduziu-a oficialmente no Natal do mesmo ano (p. 249). Um ano depois, no primeiro domingo de Advento de 1526, lamentou que a comunidade de Wittenberg não considerava a missa alemã como conviria (p. 252).

15M. BRECHT, Martin Luther - Ordnung und Abgrenzung der Reformation 1521-1532, descreve os tumultos havidos em Wittenberg (p. 35-39) e Zwickau (p. 43-45) por causa das mudanças no culto.

16M. LUTHER, Von Ordnung Gottesdiensts, p. 35.

17ID., ibid.

18Ibib., p. 36, 7-8.

19De acordo com M. LUTHER, Formula Missae et Communionis. In: D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar: Hermann Böhlau, 1891 (v. 120, [doravante Formula Missae], Lutero admitiu diversos nomes para este sacramento (sacramento, testamento, oração de graças, eucaristia, mesa do Senhor, ceia do Senhor, memória do Senhor, comunhão), "desde que não esteja poluído [cada nome] pela idéia de sacrifício ou obra" (p. 208, 8-13).

20M. LUTHER, Von Ordnung Gottesdiensts, p. 37, 29.

21M. LUTHER, Formula Missae: "fé em Cristo" (p. 209, 21).

22ID., ibid.: “sem fé e sem discernimento” (p. 205, 17).

23Ibid., p. 214, 16.

24Ibid., p. 208, 14 - 214, 3.

25H.-C. SCHMIDT-LAUBER, Die Eucharistie, In: ID., K.-H. BIERITZ (Hg.), Handbuch der Liturgik, Liturgiewissenschaft in Theologie und Praxis der Kirche. 2. Aufl. Lepzig, Göttingen: Evangelische Verlagsanstalt, Vandenhoeck & Ruprecht, 1995. p. 235.

26Conf. Júlio P. T. ZABATIERO (trad.), Léxico do Novo Testamento Grego/Português. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 1986, anaféromen, de anaféro = oferecer um sacrifício, carregar.

27C. ALBRECHT, Einführung in die Liturgik. 4. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989, resume: utilizou-se o termo tusía para o sacrifício de gratidão da comunidade e para o “sacrifício propiciatório de Cristo na cruz”, p. 12. Assim tb. H. LIETZMANN, Messe und Herrenmahl. Eine Studie zur Geschichte der Liturgik. 3. Aufl. Berlin: Walter de Gruyter & Co, 1955. p. 82.

28W. NAGEL, Geschichte des christlichen Gottesdienstes. Sammlung. Göschen: Walter de Gruyter & Co,-Berlin, 1970. p. 10.

29C. ALBRECHT, Einführung in die Liturgik. 4. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1989. p. 23.

30M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, isto é, a respeito da Santa Missa. In: ---. Obras Selecionadas. Trad. Martin N. Dreher. São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia, 1989 (v. 2), fala da "perversão" da missa. O que deveria ser recebido como testamento, é "compreendido como sacrifício" (p. 266).

31ID., ibid., p. 256.

32Ibid., p. 257. Para C. WISLOFF, Abendmahl und Messe. Die Kritik Luthers am Meßopfer. Berlin, Hamburg: Lutherisches Verlagshaus, 1969. (Arbeiten zur Geschichte und Theologie des Luthertums, v. 22), a partir de 1520, as palavras da instituição tornaram-se o ponto de partida de toda análise e crítica de Lutero em torno da Eucaristia (p. 26).

33M. LUTHER, Vom Greuel der Stillmesse, In: D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1908 (v. 18), p. 23.

34ID., ibid., p. 24. Aqui está a doutrina luterana da justificação por graça e fé, critério básico da crítica de Lutero. Segundo V. VAJTA, Die Theologie des Gottesdienstes bei Luther. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1958, Lutero “compreendeu a Deus como aquele que dá a justiça em Cristo, ao invés de exigi-la”, p. 53. O centro da teologia da Reforma foi a luta “da justiça da fé, do evangelho, contra a justiça das obras, o caminho da salvação da lei” (p. 74). É por isso que Lutero falou dos “horrores” da missa, cf. M. LUTHER, Vom Greuel der Stillmesse, p. 22-36. Por isso ele também criticou a prática de colocar apóstolos e santos em lugar de Cristo, cf. ID., ibid., p. 27.

35M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, p. 261; M. LUTHER, Vom Greuel der Stillmesse, p. 24.

36M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT: "não um benefício aceito, e sim um benefício dado" (no original: "beneficium non acceptum, sed datum", WA 6, 364, 18), p. 264.

37M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, p. 259. Em 1525, no texto Vom Greuel der Stillmesse, Lutero falou da "summa" do evangelho pregado: Deus deu o seu Filho para a nossa redenção (p. 23).

38ID., ibid., p. 256. Interpretando Lutero, C. WISLOFF, Abendmahl und Messe, afirma que a missa, de acordo com a instituição de Cristo, “servia como apoio da fé contra a acusação da consciência, a um fortalecimento na luta e no combate da fé”, p. 51.

39Ibid., p. 257.

40C. WISLOFF, op. cit., p. 18.

41Lutero apresenta sua compreensão de testamento em Um sermão a respeito do NT. O testamento tem várias partes: (a) O testador é Cristo. (b) Os herdeiros são os cristãos. (c) O testamento compõe-se das palavras de Cristo. (d) O selo é o pão e vinho (que, unidos à palavra de Cristo, formam o Sacramento). "É isso que o sacerdote declara quando ergue as hóstias (...): Vejam, este é o selo e sinal do testamento". (e) O bem logrado são o perdão e vida eterna. (f) E o compromisso está na "memória ou celebração que devemos a Cristo" (1Co 11.26), p. 260. "Testamento (...) é (...) uma última e irrevogável vontade daquele que vai morrer (...). A pequena palavrinha 'testamento' é, portanto, um breve conceito para todos os milagres e graças de Deus, cumpridos por Cristo" (p. 258).

42M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, p. 261. Conforme V. VAJTA, Die Theologie des Gottesdienstes bei Luther, “para Lutero, sacrifício não era a missa 'feita', e, sim, a missa 'usada' na fé”, p. 274. Seja aqui apenas mencionado que também é a partir desses pressupostos que Lutero entendeu e admitiu a elevação do pão e vinho na celebração eucarística. Conforme Um sermão a respeito do NT, eles são elevados para destacar o beneficium que é recebido através deles (p. 265).

43M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, p. 264.

44ID., ibid., p. 265. Em outro de seus textos de 1525, Wider die himmlischen Propheten, von den Bildern und Sakrament, In: D. Martin Luthers Werke. Kritische Gesamtausgabe. Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1908 (v. 18), Lutero escreve que "missa", derivada do termo hebraico 'mas', é o que se oferece a Deus em gratidão ao reconhecer-se a magnitude da dádiva dele recebida (p. 104, 9). Segundo O. BJORDAL, Lex orandi, lex credendi. A Lutheran Approach to Liturgical Theology. Minnesota: Luther Northwestern Theological Seminary, 1983, “nesse contexto, o sacrifício de louvor e graça torna-se um elemento muito importante no culto luterano. Ele é a ação da fé”, p. 75.

45M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, p. 265.

46ID., ibid., p. 267. Na Apologia da Confissão de Augsburgo, artigo XXIV, Melanchton retoma a questão do sacrifício para dirimir novas dúvidas e questionamentos dirigidos à Reforma acerca desse assunto. Ele distingue entre sacramento ("obra na qual Deus nos apresenta aquilo que a promessa anexa à cerimonia oferece") e sacrifício (p. 269). Um sacrifício é o "propiciatório". E, "somente a morte de Cristo é verdadeiramente sacrifício propiciatório" (p. 271). Outro, é o "sacrifício de ação de graças", que "é feito pelos reconciliados (...) em ordem de retribuirmos gratidão" (p. 269); são "os sacrifícios de ação de graças, a oblação, a libação, as retribuições, as primícias, os dízimos" (p. 270). Fundamental é a premissa que autoriza o sacrfício de ação de graças: aquilo que Deus em Cristo fez, dando "remissão dos pecados" e "outros benefícios" (p. 269).

47Isso reaparece em M. LUTERO, Do Cativeiro Babilônico da Igreja [1520], In: ---. Obras Selecionadas. Trad. Martin N. Dreher. São Leopoldo, Porto Alegre: Sinodal, Concórdia, 1989 (v. 2), p. 365.

48B. LOHSE, A fé cristã através dos tempos. São Leopoldo: Sinodal, 1972. p. 150.

49ID., ibid., p. 151.

50Em M. LUTHER, Vom Mißbrauch der Messe, há uma frase que relaciona essa compreensão ao texto de Rm 12.1: “Se, porém, oferecemos a Deus nossos corpos em sacrifício de louvor (Rm 12.1), então os oferecemos e recomendamos a Deus inteiramente, e nada retemos para nós mesmos”, p. 128.

51M. LUTERO, Um sermão a respeito do NT, p. 267.

52ID. ibid, p. 264.

53Ibid., p. 267. C. WISLOFF, Abendmahl und Messe, entende que desde a irrupção da sua crítica contra a idéia sacrificial, Lutero defendeu que devemos nos trazer a nós mesmos como sacrifício (p. 16). E V. VAJTA, Die Theologie des Gottesdienstes bei Luther, complementa: o conteúdo do sacrifício de gratidão é agradecimento, louvor, oração e o sacrifício do próprio corpo (p. 275).

54H.-C. SCHMIDT-LAUBER, Die Eucharistie, In: ID., K.-H. BIERITZ (Hg.), Handbuch der Liturgik, p. 235.

55Para o caso da IECLB, isto pode ser comprovado através de uma análise dos seus manuais de culto.

56H.-C. SCHMIDT-LAUBER, Die Eucharistie, In: ID., K.-H. BIERITZ (Hg.), Handbuch der Liturgik, p. 236. J.-D. BENOIT, Liturgical Renewal. Studies in catholic and protestant developments on the continent. London: SCM Press Ltda, 1958. (Studies in Ministry and Worship), ao analisar a liturgia eucarística da Igreja Reformada da França, escreve sobre a importância e o significado do sacrifício de Cristo por nós. Nossa resposta a seu amor “somente pode ser a consagração e oferta de nós mesmos”. Nós nos oferecemos “como um sacrifício vivo e santo”. Essa oferta faz “de nossos corpos um sacrifício vivo, agradável a Deus”. E ele ocupa o lugar do ofertório da Liturgia Romana (p. 40). “É verdade que esse sacrifício de nós mesmos nunca é, e jamais poderá ser, algo mais que uma resposta”, p. 41.

57H.-C. SCHMIDT-LAUBER, op. cit., p. 225.

58J.-D. BENOIT, op. cit., p. 41.

59M. LUTERO, Do Cativeiro Babilônico da Igreja, p. 364. M. LUTHER, Vom Greuel der Stillmesse, p. 23-24.

60R. R. MARTINI. Eucaristia e conflitos comunitários. São Leopoldo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, 1997 (tese de doutorado). Cap. III, p. 301-302.