Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 1, p. 5-19

ESTATUTO DO EXERCÍCIO PÚBLICO DO MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO: DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E IMPLICAÇÕES TEOLÓGICO-CONFESSIONAIS. Aula inaugural do 2º semestre de 2000, Escola Superior de Teologia
Gottfried Brakemeier e Martin Volkmann


Martin Volkmann

1. Introdução

A abordagem deste assunto numa aula inaugural nesta casa se justifica por dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, pela tarefa que cabe a essa instituição de formação. Em seus diferentes Institutos, a EST recebeu a incumbência de preparar pessoas para o exercício do ministério da Igreja em diferentes atribuições específicas. Na Faculdade de Teologia, para o ministério pastoral, no Instituto de Educação Cristã, para o ministério catequético e no Instituto de Formação Diaconal, para o ministério diaconal. Além disso, nas mais diversas atividades desenvolvidas pelos outros Institutos da EST – pós-graduação, música, extensão – a preocupação última é a capacitação de pessoas para a participação na missão da Igreja em colocar sinais do Reino no contexto em que se situa. Portanto, por sua tarefa precípua de formação para a missão da Igreja, a EST não pode se furtar de refletir sobre esse tema. Em segundo lugar, a ocupação com essa temática se torna ainda mais desafiadora também para a EST justamente neste momento histórico em que está na agenda do Concílio da Igreja a apreciação do novo Estatuto. A Igreja toda está desafiada a refletir sobre esse assunto. E considerando que estão em jogo não apenas questões técnicas, mas também questões de princípio, nada mais justo do que aproveitarmos este momento para compartilharmos algumas reflexões em torno desse assunto.

Pelo envolvimento com a temática, seja por ofício, seja por incumbência da Igreja, o colega Brakemeier e eu fomos desafiados a desenvolver esse assunto nesta aula inaugural. Pensamos que seria importante enfocarmos esses dois aspectos colocados no subtítulo: desenvolvimento histórico e implicações teológico-confessionais. Cabe a mim desenvolver a primeira parte e ao Gottfried, a segunda.



2. Desenvolvimento histórico

Não se trata de apresentarmos nesta parte como as diferentes Igrejas regulamentaram ao longo da história o desempenho do ministério. Trata-se, isso sim, de analisarmos especificamente como a IECLB regulamentou esta matéria, especialmente nos últimos anos. Limitar-nos-emos a esse enfoque por questão de tempo, por um lado, e por questão de relevância da discussão nos últimos anos, por outro lado.

Além disso, quando falamos em exercício público do ministério, referimo-nos ao ministério ordenado, ou melhor, aos ministérios ordenados. Mas isso já é linguagem dos últimos anos. Convém darmos um passo mais atrás para compreendermos o desenvolvimento havido nos últimos anos.



2.1 Os Primórdios

Fiel à tradição da Reforma e à herança das Igrejas da Alemanha, nos antigos Sínodos e na IECLB incipiente, ministério ordenado era sinônimo de ministério pastoral. Isso se reflete no fato de que o estatuto que regulamenta o exercício público do ministério era a “Ordnung des Pfarramtes” ou “Regulamento do Ministério Pastoral”. Verificando a evolução desses diferentes regulamentos, ative-me ao período da IECLB, ou seja, depois de 1949 quando foi criada a Federação Sinodal, o embrião da atual IECLB. E a primeira “Ordnung des Pfarramtes” (portanto, em alemão) consta no Órgão Oficial da IECLB nº 7 de junho de 1963, depois de ter sido aprovada no Concílio de 27.10.1962. Este regulamento é o resultado de um anteprojeto em discussão desde 1960, conforme consta no Órgão Oficial nº 4 de junho de 1960. O mais interessante é que esse anteprojeto fora elaborado pelo Departamento do Exterior (Kirchliches Aussenamt) da Igreja Evangélica da Alemanha (EKD), “considerando as leis para pastores editadas nos últimos anos no âmbito da EKD, bem como os estatutos dos Sínodos e da Federação Sinodal”. Sugestões de alteração deveriam ser enviadas até 01.04.61 ao Conselho da Federação. A versão final, que deverá ter o consentimento do Departamento do Exterior da EKD e do Conselho da Federação Sinodal, deveria ser aprovada no Concílio de 1962, como de fato ocorreu. Este Regulamento vigorou até 1981. No Concílio Extraordinário de Carazinho, em 24.10.1980, foi nomeada uma comissão representativa do Conselho Diretor que, em sua reunião de 03.04.81, aprovou a redação final do novo “Regulamento do Ministério Pastoral”.

Esta centralidade no ministério pastoral também se reflete ainda em “Nossa Fé Nossa Vida”, guia para a vida comunitária aprovado em 1972, no Concílio Geral em Panambi. Em resposta à pergunta: “Qual a função dos ministérios?”, vem um pequeno parágrafo com a informação básica e, a seguir, a pergunta: “Qual a função específica do pastor?” e três parágrafos extensos sobre isso. Segue-se a isso um novo título: “Qual a tarefa de outros obreiros?” Referindo-se à amplitude da missão de Cristo, o texto destaca que a comunidade pode incumbir outras pessoas, conforme sua necessidade e possibilidade. São mencionados então “professores-catequistas, professores de ensino cristão, diáconos e diaconisas, leitores e pregadores, orientadores de grupos e ainda outros obreiros”. Portanto, mesmo que haja o monopólio do ministério pastoral como ministério ordenado, já se aponta para a existência de outros obreiros e obreiras engajadas no desempenho da missão de Cristo.

Isso nos leva a olhar para a fase intermediária desse desenvolvimento em que aparece fortemente a discussão em torno dos outros ministérios específicos.



2.2 Fase intermediária

Como consta em “Nossa Fé Nossa Vida”, há na IECLB diversos outros obreiros atuantes nas comunidades e que receberam uma formação específica para tal. Trata-se, em especial, de obreiros e obreiras catequistas e diaconais.

Não interessa aqui reconstruir toda a evolução da formação catequética e da atuação de obreiras diaconais na IECLB. Basta mencionar apenas que, desde os primórdios de nossas comunidades, sempre houve a atenção para a educação na fé de seus membros, geralmente vinculada à escola comunitária. Por isso também houve, muito antes da formação de pastores, o centro de formação de professores. E, da mesma forma, muito cedo em nossas comunidades houve a presença de diaconisas. Quer dizer, a presença de obreiras catequistas e diaconais em comunidades da IECLB vem de muito longa data. Mas a regulamentação de suas funções recebeu atenção maior nos últimos anos.

Desde 1957, há um Regulamento do Cargo de Catequista. Mas foi o mérito de catequistas formados pelo Instituto Superior de Catequese e Estudos Teológicos (ISCET), que haviam recebido formação em nível superior, a luta pelo reconhecimento de sua função como um ministério específico e que redundou na decisão pela ordenação para outros ministérios, além do pastoral.

No Boletim Informativo nº 114 de 22.01.90, item 7, consta que o Conselho Diretor deferiu o Regulamento do Cargo de Catequista, reformulado no I Encontro Nacional de Catequistas, em 1989, “visando assegurar maior integração e participação dos obreiros catequistas no ministério eclesiástico da IECLB”.

No mesmo ano, conforme o Boletim Informativo nº 119 de 05.11.90, item 19, o “Conselho Diretor aprovou o texto do Regimento do Ministério Diaconal, instrumento que regulará a atuação e vida dos obreiros diaconais da IECLB, bem como servir-lhes-á de orientação”.

Observe-se que, enquanto com relação aos catequistas ainda se fala em “cargo de catequista”, nesse já se fala em “ministério diaconal”. Isso já reflete o desenvolvimento que está em andamento rumo ao reconhecimento e ordenação para diferentes ministérios específicos. Convém mencionar ainda que a valorização e o reconhecimento do ministério diaconal está intimamente vinculada ao surgimento do Seminário Bíblico-Diaconal junto à Casa Matriz de Diaconisas, em 1974.

Neste mesmo Boletim nº 119, item 3, informa-se que o 17º Concílio Geral em Três de Maio, em outubro de 1990, “concluiu pela necessidade de o projeto de alteração do Regulamento do Ministério Pastoral ser reestudado pelas Comunidades e Paróquias, tendo em vista também os regulamentos referentes aos cargos de obreiros diaconais e obreiros catequistas”.

Novo passo marcante nesse sentido foi dado no Concílio Geral de Pelotas. Marcante em dois sentidos. Em primeiro lugar, pela decisão de estender a ordenação para todos os ministérios específicos, não ficando restrita ao ministério pastoral como era até então. Sobre isso o colega Brakemeier irá discorrer logo a seguir. Em segundo lugar, pela necessidade de se criar um estatuto geral válido para todos os ministérios ordenados, além dos regulamentos específicos. Assim, neste Concílio Geral foi aprovada a primeira versão do “Estatuto do Exercício Público do Ministério Eclesiástico”. Consta no Boletim Informativo nº 130 de 12.11.92, item 2.4: “trata-se do ‘Estatuto do Estatuto Ministério Eclesiástico’, há mais tempo em discussão, inclusive nos Concílios Distritais de 1992, e que estabelece, estatutariamente, os ministérios pastoral, diaconal e catequético na IECLB”.

Portanto, a partir de 1992 a IECLB tem um estatuto geral para o ministério eclesiástico e três regulamentos diferentes para os ministérios específicos.

Mas a discussão em torno do ministério eclesiástico não terminou aí. Como esses diferentes ministérios ordenados se relacionam entre si? Qual a atribuição específica de cada um? E qual a tarefa deles em relação ao sacerdócio geral de todos os crentes? Em resposta a esses questionamentos foi aprovado, no Concílio Geral de Cachoeira do Sul, em 1994, o documento “Ministério Compartilhado”. Além de buscar respostas a esses questionamentos, esse documento aponta para mais um ministério específico: o missionário. Por isso havia a necessidade de se elaborar um regulamento próprio para esse ministério específico. Outrossim, a reestruturação da IECLB requeria nova adaptação de todos os regulamentos. Com isso passamos ao momento atual.



2.3 Momento atual

No Concílio da Igreja, em Rodeio 12, em 1998, esteve na pauta esta dupla tarefa. O debate na Câmara, que estava encarregada da análise da temática, logo evidenciou que o assunto não era tão fácil assim. A questão chave era a definição das atribuições específicas de cada ministério ordenado. Essa questão estava fortemente presente tanto na adequação dos regulamentos já existentes, quanto na análise do novo regulamento para os missionários. Por isso houve inclusive Sínodos que se manifestaram contra a aprovação do assunto, naquele momento. Solicitavam um espaço de tempo maior para aprofundar a discussão do assunto, especialmente a relação entre os ministérios pastoral e missionário, uma vez que as atribuições específicas de ambos, conforme o anteprojeto dos regulamentos, eram muito semelhantes. A Câmara sugeriu e o plenário acatou uma solução intermediária, ou seja, aprovou as adaptações necessárias à nova estrutura da IECLB nos regulamentos dos ministérios já em vigor (pastoral, catequético e diaconal) e deferiu o novo regulamento do ministério missionário. Mas ao mesmo tempo decidiu nomear, no próprio concílio, uma Comissão de Revisão e Sistematização dos regulamentos do ministério eclesiástico e do ordenamento jurídico-doutrinário, bem como das questões de vínculo dos obreiros e obreiras. Para cada um destes três itens, foram nomeadas posteriormente, pelo Conselho da Igreja, subcomissões para elaboração de anteprojetos. Cada comissão é composta de um representante dos quatro ministérios e de um jurista. Estas comissões deveriam apresentar o resultado de seu trabalho no próximo Concílio da Igreja, que vai ocorrer em outubro próximo, em Cuiabá.

A subcomissão da “Consolidação do Estatuto do Exercício Público do Ministério Eclesiástico e dos Regulamentos dos Obreiros”, da qual fez parte o colega Brakemeier, elaborou uma proposta em que são reunidos em um único estatuto os cinco documentos normativos referentes ao ministério eclesiástico. Com base nesse trabalho e no do grupo que discutiu as questões de vínculo, a Comissão de Revisão e Sistematização, da qual eu faço parte, elaborou o anteprojeto que foi encaminhado aos Sínodos e às Paróquias para estudo e apresentação de emendas.

Este anteprojeto provocou um grande alvoroço, principalmente entre os obreiros/as pastores/as. Ao lado dos motivos de ordem teológica, que serão aprofundados logo a seguir, foram dois os motivos principais do protesto:

- a falta de tempo para análise de um documento de tamanha relevância para a vida da Igreja e de seus obreiros e obreiras;

- o desencontro de informações sobre o assunto, uma vez que o anteprojeto fora enviado apenas às Paróquias e Sínodos e não às obreiras e aos obreiros, isto é, às pessoas diretamente interessadas no assunto.

As reclamações têm alguma procedência. Realmente, o anteprojeto deveria ter sido enviado a todas as pessoas envolvidas com a questão, as obreiras e obreiras, para poderem se inteirar do assunto e se preparar para o debate nas Assembléias Sinodais. Quanto ao tempo, realmente foi curto, já que o material foi enviado apenas em fevereiro último e diversas assembléias já ocorriam em março e abril.



3. Conclusão

Como pudemos acompanhar nesse rápido apanhado histórico, o debate em torno do ministério da Igreja vem de longa data. E com certeza não vai terminar em outubro, em Cuiabá. Já há um consenso na Comissão de Revisão e Sistematização de que o assunto não poderá ser votado. Voltará para as bases para aprofundamento da discussão. E para isso serve este nosso momento de hoje, especialmente as considerações teológico-confessionais que o colega Brakemeier exporá agora.

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O PROJETO DO “ESTATUTO DO EXERCÍCIO PÚBLICO DO MINISTÉRIO ECLESIÁSTICO”: Comentários Teológicos (versão revista)
Gottfried Brakemeier

Em seu XVIII Concílio Geral, realizado em 1992 na cidade de Pelotas, a IECLB houve por bem estender a ordenação aos ministérios catequético e diaconal. Juntamente com o ministério pastoral, pois, seriam três os ministérios ordenados, sendo que entrementes o ministério missionário foi incluído na mesma categoria. O projeto de um “Estatuto”, ou “Regulamento” comum de todos estes ministérios nada mais é do que consequência coerente com esta decisão, tomada em 1992.

O Concílio não agiu de maneira despreparada. Aprovou proposta, baseada em parecer de uma das câmaras da comissão teológica da época, bem como em endosso da câmara responsável pela apresentação da matéria aos conciliares. Mesmo assim, teria sido conveniente o adiamento de uma votação, considerando as profundas implicações da proposta, não suficientemente refletidas na oportunidade. Merece aplausos, portanto, a idéia de não forçar uma definição do novo “Estatuto” (EEPME), mas sim de deixar tempo para a discussão e o amadurecimento da mesma. Uma concepção de Igreja está em jogo, de comunidade e de ministério, concepção esta que, em boa medida, vai determinar o futuro da IECLB neste País. Estaremos no caminho certo?

O projeto levantou ondas. É motivo de preocupação. É bom que seja exaustivamente estudado, não só pelos obreiros e as obreiras, mas sim pelas comunidades em seu todo. Teologia é assunto de todo povo de Deus. Assim também neste caso. Trata-se de definir natureza e atribuições do “ministério ordenado” na IECLB. Vai aí a primeira sugestão, a saber de alterar o título. Por que “estatuto do exercício público do ministério eclesiástico”? De que nós precisamos é de um “Estatuto do Ministério Ordenado na IECLB”. Pois este ministério é um só, ainda que se apresente em quatro variantes. É no que consiste a novidade do projeto. Será ela a matéria de minha reflexão. Iniciarei com algumas ponderações sobre a “ordenação”, falarei a seguir das atribuições comuns e específicas dos ministérios para finalmente procurar situar o todo na concepção eclesiológica luterana.



I. Sobre a ordenação

1. Que é a ordenação? A ordenação é o ato, através do qual uma pessoa está sendo convocada, abençoada e enviada para a pregação pública do Evangelho e para a administração correta dos sacramentos. Ela tem analogias em atos semelhantes, a exemplo de “bênção”, “instalação”, “introdução” e outros. No entanto, distingue-se destes por incumbir com especial responsabilidade teológica os/as obreiros/as, a ser exercida publicamente. A ordenação compromete a pessoa durante toda a sua vida, requerendo sólida formação teológica e criterioso exame das pessoas ordenandas.

2. Quem ordena? É claro que a instância ordenadora é a “comunidade”. Mas não é a “comunidade local” a que essa autoridade fica restrita. É a “comunhão das comunidades” que “administra” a ordenação, ou seja é a IECLB. A responsabilidade para a ordenação não pode ficar entregue ao individualismo comunitário. É assunto eminentemente eclesiástico. E no entanto, também a Igreja não tem a última palavra. Ela ordena em obediência ao mandato de Deus que quer que sua palavra seja anunciada. A pessoa ordenada não é funcionária da paróquia, e, sim, “serva de Deus”. Portanto, através da Igreja, é Deus mesmo quem ordena para o ministério.

3. Quem é ordenado? Tradicionalmente a ordenação tem sido reservada na IECLB aos/às pastores/as. Em termos ecumênicos costuma ser privilégio do ministério episcopal, pastoral, respectivamente sacerdotal. E no entanto, a história da Igreja conhece também outros ministérios ordenados, a exemplo do diaconal ou presbiterial. A ampliação da ordenação aos ministérios catequético, diaconal e missionário não é tão extraordinária como à primeira vista possa parecer.

4. Para que as pessoas são ordenadas? Ora, elas são ordenadas para serem arautos do Evangelho onde quer que seja. O mandato da ordenação é “católico”, universal, excede os limites de uma Igreja confessional e nacional como a IECLB. O raio de ação das pessoas ordenadas pela IECLB é o da Igreja de Jesus Cristo em todo o mundo. Por isto mesmo a IECLB reconhece a ordenação de outras Igrejas. Não a repete, caso admitir obreiros/as de outras denominações.

5. Quais os direitos que a ordenação confere? Em princípio nenhum. Não confere um “status” de natureza indelével. Confere isto, sim, um dever. Não dá o direito de cargo numa instituição eclesiástica. A ordenação não implica automaticamente o direito a uma “relação de serviço”, algo em muita evidência no novo EEPME. E no entanto, não é possível afastar de todo as questões jurídico-eclesiásticas e institucionais. Se uma Igreja ordena pessoas, deve abrir espaços para a sua atuação. Seria irresponsável ordenar sem providenciar lugares de trabalho. Da mesma forma é inevitável que a ordenação inclua o compromisso com uma determinada base confessional. Diz o projeto do EEMPE que a ordenação estabelece um vínculo confessional e ministerial com a Igreja. Quem foi ordenado na IECLB passa a ser obreiro/a da mesma. Correspondentemente cabe à Igreja responsabilizar as pessoas ordenadas através do “Ordenamento Jurídico-Doutrinário”. Embora a Igreja não tenha poder e direito de anular a ordenação, pode retirar o credenciamento que nela está implícito. Isto acontecerá quando a pessoa ordenada comprovadamente se mostrou traidora do ministério e das respectivas responsabilidades. Às pessoas ordenadas, portanto, não se permite o status de pessoas “extra-eclesiásticas” ou “super-eclesiásticas”, assim como inversamente não se permite à Igreja o descaso com as pessoas que ordenou.

6. O que mudou com a ordenação de quatro ministérios na IECLB? A ordenação mudou o perfil destes ministérios. Carregam, enquanto ordenados, maior responsabilidade teológica, devendo exercê-la de público. Devem falar e atuar “em nome” da IECLB. Foram inseridos, a seu modo, no ministério da pregação e da administração dos sacramentos. Isto é justo. Pois a pregação e mesmo a responsabilização pelo sacramento não se reduzem a uma questão meramente verbal. Exigem o testemunho em sentido amplo. Jesus pregou também por seus gestos. Ademais, seria diminuir a catequese, por exemplo, caso se lhe negasse responsabilidade semelhante à da pregação em culto.

7. Quais as vantagens e quais os perigos da decisão de Pelotas?

a. As vantagens residem na flexibilização das estruturas do ministério eclesiástico e na partilha da responsabilidade teológica. De todos os obreiros e de todas as obreiras se deve exigir doravante maior zelo pela identidade confessional da IECLB, além de uma contribuição específica ao exercício do ministério eclesiástico. Haverá, assim esperamos, uma “pluriformização” do ministério ordenado em direção a uma comunidade constituída por variedade de carismas, conforme testemunhada pelo Novo Testamento.

b. O perigo consiste na clericalização de mais algumas categorias profissionais, com o que estariam desvirtuados os legítimos objetivos da proposta. Há que se tomar providências para evitar o caos resultante da nivelação das particularidades dos ministérios. A ordenação não transforma todos os obreiros em pastores e pastoras. Apesar de aumentar o encargo teológico, não extingue a identidade peculiar dos ministérios.

c. As diferenças entre os ministérios, por sua vez, poderiam diluir o significado preciso da ordenação. É outro perigo a contornar. Não existem quatro ordenações diferentes na IECLB, e, sim, uma só, convocando para a mesma tarefa da pregação do evangelho, ainda que em modalidades distintas. O que se pretende é um só ministério ordenado, desdobrado em quatro ministérios específicos, ou seja em quatro variantes.



II. Unidade e diversidade do ministério ordenado

1. O ministério eclesiástico, em todas as suas expressões, está a serviço de Jesus Cristo e do sacerdócio dos crentes que nele tem sua origem. Há uma só causa, e ela une os ministérios específicos. É do que falam os Art. 9° e 10 do EEPME. As particularidades são matéria da Secção II do Estatuto. Já existem emendas no sentido de reordenar e de complementar a relação das atribuições. Não há necessidade de discuti-las neste contexto. O que importa é que todos os ministérios específicos tenham claramente definido seu perfil a fim de não conflitarem com o de outros. Indefinição significa programar colisões entre os obreiros e as obreiras.

2. Por ora, não há definição suficiente para o “ministério missionário”. É objeto de fortes questionamentos. Em princípio é conveniente de a direção da Igreja ter a possibilidade de incumbir pessoas de trabalho missionário em áreas e atividades especiais com o fim de agilizar a missão de Deus. Entretanto, tal atividade requer alto grau de disciplina a fim de não minar ou perturbar o planejamento missionário das próprias comunidades. A aprovação do Estatuto se condiciona a maior clareza neste aparte.

3. Também nos demais ministérios necessário se faz clara definição das funções peculiares. O parágrafo 4° do Artigo 3° deveria ter, por isto a seguinte redação: “Pela ordenação é conferida a autorização para a pregação pública do Evangelho e a administração dos sacramentos, condicionando-se a modalidade do exercício da mesma às atribuições do respectivo ministério, à distribuição de tarefas entre os obreiros e as obreiras e ao acerto com o campo de trabalho conforme o Artigo 16, § 2° deste Estatuto.” (A parte em letra cursiva é nova.) A ordenação insere numa equipe de obreiros, razão pela qual deve haver acerto de funções na mesma. A desconsideração deste princípio deveria ser motivo de penalização.

4. Visto ser impossível exigir de todos os obreiros o mesmo grau de formação teológica, a responsabilidade pela conduta teológica da comunidade deverá continuar sendo dever precípuo do ministério pastoral. É isto o que se espelha nas atribuições específicas do mesmo. Mesmo assim esse dever já não mais representa uma responsabilidade exclusiva. De diáconos e diáconas se espera uma teologia da diaconia, de catequistas uma teologia do catecumennato, bem como a correspondente motivação da comunidade em ambos os casos.

5. Grande vantagem do projeto constitui a possibilidade da substituição de um ministério por outro. Catequista também pode celebrar culto e administrar sacramento, sem licença especial. Entretanto, só o poderá fazer em caso de ausência do obreiro ou da obreira a quem prioritariamente o compete. Com tal regulamentação poderão ser eliminados tradicionais obstáculos missionários que limitavam aos pastores a fundação e edificação de comunidade em lugares não atingidos pela IECLB. É possível também que, nessas condições, um número maior de campos de trabalho se anime a convocar obreiros e obreiras catequistas e diaconais.

6. O desdobramento do único ministério ordenado em quatro ministérios específicos representa uma concretização do “ministério compartilhado”, entendendo o ministério eclesiástico de que fala o Art. V da Confissão de Augsburgo como sendo confiado à Igreja em seu todo e suscetível de diferentes formas de exercício. Além do ministério ordenado existem outros, não ordenados. O objetivo da proposta do ministério compartilhado é a diversificação do ministério eclesiástico e o engajamento de muitas pessoas nos diferentes níveis. A inclusão dos ministérios catequético, diaconal e missionário no ministério ordenado é um passo, ainda que de forma alguma o único possível e desejado, em direção ao ministério administrado comunitáriamente.



III. Ministério e eclesiologia

1. Eclesiologia e teologia do ministério se condicionam mutuamente. Uma é transparente para a outra. Não podemos entrar em detalhes no tempo aqui disponível. Basta lembrar que eclesiologia luterana se distancia tanto do “episcopalismo”, segundo o qual a autoridade na Igreja está concentrada nas mãos dos bispos e do clero, quanto do “congregacionalismo”, segundo o qual a autoridade está com a congregação. Conforme doutrina luterana, a autoridade está em e com Jesus Cristo, perante o qual ambos, o ministério e a comunidade, são responsáveis. É a palavra de Deus que deve reger a Igreja. Com ela estão por igual comprometidos obreiros e membros. Ninguém deve dominar o outro, nem os obreiros as comunidades, nem as comunidades os obreiros.

2. Conforme o projeto do EEMPE o vínculo empregatício é constituído exclusivamente por um “campo de trabalho”. Isto significa uma mudança em comparação com a prática anterior, segundo a qual a relação de serviço era constituída com e pela IECLB. Em outros termos, pastores e pastoras eram “empregados” da IECLB, mesmo quando não conseguiam uma ocupação em paróquia. A partir do momento da aprovação do EEMPE, obreiro/a que não conseguir fechar um acordo com “um campo de trabalho” estará desempregado. Os “campos de trabalho” terão mais poder no futuro. Poderão convocar e despachar obreiros com maior facilidade do que antes. Isto acarreta o perigo de “os campos de trabalho” controlarem o ministério e de lhe imporem as regras de jogo.

3. A antiga prática tinha graves inconvenientes. A estabilidade de emprego, garantida pela IECLB, transformava por demais vezes as comunidades em vítimas de obreiros (pastores) incompetentes ou irresponsáveis. Além disto, a IECLB se tornava cada vez mais vulnerável a dispendiosos processos trabalhistas, movidos por pastores alegadamente injustiçados, contra a instituição. Não há como manter o antigo estatuto em circunstâncias fortemente alteradas. Entretanto, há que se tomar providências para impedir que doravante aconteça exatamente o contrário. Tais cuidados devem consistir na inclusão da autoridade sinodal e mesmo nacional no processo do provimento das vagas, por exemplo. A nenhum “campo de trabalho” deveria ser permitido o arbítrio. Há que se buscar formas de cooperação e de co-responsabilidade nessa tão importante questão.

4. Existe ainda outro motivo para tanto. Consiste na eventualidade de uma emancipação de “campos de trabalho” do todo da IECLB. Certamente há elementos que o impedem. Entretanto, o perigo de um fraccionamento da IECLB mediante o individualismo e o isolacionismo dos campos de trabalho não permite ser subestimado. A unidade da IECLB está em jogo. Para tanto os obreiros e as obreiras devem colaborar, não tentando imprimir nas comunidades o estilo e a linha teológica própria, mas sim a que é devida a uma Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. O mesmo, porém, se exige dos “campos de trabalho”. Devem escolher os obreiros não de acordo com as suas simpatias, mas pelo critério da fidelidade à identidade confessional da IECLB. Para que isto aconteça, necessário se faz estreitar os laços das comunidades através dos sínodos e da Igreja nacional. O EEMPE deve prever dispositivos legais para tanto.

5. Uma apreciação geral do projeto não poderá deixar de constatar significativos avanços da IECLB na conceituação e estruturação do ministério ordenado. A diversificação do mesmo pretende uma comunidade mais dinâmica, preparada para enfrentar os desafios da sociedade moderna, urbana, plural, em constante mobilidade. A ênfase no preparo teológico, exigido também de catequistas, diáconos/as, missionários/as além da valorização das especifidades destes ministérios proporcionará à IECLB adicional competência no ministério ordenado. Importa aproveitar adequadamente esse cabedal de forças e investi-lo na missão da Igreja. Seja repetido que há aspectos a corrigir, a aperfeiçoar e a rever no projeto. Mas eu não vejo motivo nenhum em rejeitá-lo e voltar ao Estatuto anterior. E que a proposta seja incompatível com a teologia luterana e com os horizontes ecumênicos do ministério, isto necessitaria de provas consistentes.

Espero que haja amplo debate da proposta a fim de ser votada, com as devidas emendas, em Concílio Geral por um plenário consciente. A questão tem relevância para o modelo de Igreja que a IECLB pretenderá ser no futuro.