Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 3, p. 22-37
Sacerdócio
em questão: uma análise sociológica da relação
de dois agentes religiosos: pastores ordenados e pastores
não-ordenados
Wilhelm
Wachholz
Introdução
Os pastores não-ordenados1 marcaram a vida comunitária dos teuto-evangélicos no Rio Grande do Sul no século XIX, estendendo-se pelo século XX.2 A vinda de um número maior de pastores ordenados a partir de 1864, ou seja, pastores formados em seminários ou universidades na Europa, levou a conflitos e concorrências entre estes e os pastores não-ordenados. Aqueles tentaram “domesticar” estes através do estabelecimento de uma “empresa de salvação” burocrática, institucional: a Igreja.
Nossa intenção será abordar essa temática não teológica, mas sociologicamente. Isso significa analisar como se dá o processo de produção e circulação dos bens simbólicos religiosos quando burocratizados, racionalizados, legalizados, institucionalizados e que levam à monopolização, hierarquização, dominação da religião.
Faremos este ensaio na perspectiva da teoria da religião de Max Weber, sem, contudo, aprofundar conceitos deste autor. A teoria de Weber, analisada, entre outros, por Bourdieu, procura analisar a racionalização da religião na distinção entre o sacerdote e o leigo. Como entender os pastores ordenados e os não-ordenados nessa perspectiva? Analisaremos inicialmente o pastorado não-ordenado no contexto do protestantismo no Rio Grande do Sul e, em seguida, faremos uma abordagem sociológica da questão. Ao final, faremos uma tentativa de síntese.
1 – O pastorado não-ordenado
1.1 – Alguns aspectos introdutórios
A imigração sistemática de teuto-evangélicos para o Brasil, sobretudo a partir de 1824, também motivou a vinda de alguns poucos pastores europeus. A Constituição Imperial de 1824 havia proclamado “tolerância aos acatólicos” – não liberdade religiosa! Agentes aliciadores na Europa fizeram a promessa a pastores de que seriam contratados pelo Império e que deste receberiam seus salários. Esta promessa, no entanto, logo foi quebrada.3
A partir de 1864, entidades e órgãos eclesiásticos europeus passaram a enviar pastores ordenados de forma regular. Poucos foram os pastores ordenados que atuaram no Rio Grande do Sul até então, de forma que o número era insuficiente para dar continuidade ao modelo comunitário-eclesiástico europeu, baseado no pastorado ordenado. Para suprir a ausência de pastores ordenados, muitas comunidades elegeram alguém dentre elas mesmas para assumir as funções pastorais (e docentes!). Assim, da necessidade se originou o pastorado não-ordenado.4
O pastorado não-ordenado foi impulsionado ainda mais na década de 1860 com a Lei 1.144, de 11 de setembro de 1861, e com o Decreto 3.069, de 17 de abril de 1863. Através destes, o governo imperial do Brasil regulamentou o casamento de pessoas que professavam religião diferente daquela oficial do Estado – a Católica Apostólica Romana! Para que o casamento dos acatólicos tivesse efeito civil, era necessário que as comunidades apresentassem um documento de nomeação ou eleição dos pastores e os registrassem junto ao órgão público.5 Contudo, não se exigia comprovação de alguma formação teológica em universidade ou seminário. Assim, formou-se a opinião de que todos os pastores eram legitimados em seus cargos por meio do registro estatal, como se este fosse uma espécie de substituto da ordenação.6
A tentativa de Rotermund em fundar um Consistório (década de 1880) tinha como um dos principais objetivos combater o pastorado não-ordenado.7 O mesmo objetivo estava presente anteriormente na fundação do Sínodo Evangélico Alemão da Província do Rio Grande do Sul (1868) e, posteriormente, do Sínodo Rio-Grandense (1886).8 A idéia de institucionalizar a Igreja (sínodos e consistório) como forma de combater ordenadamente (!) o pastorado não-ordenado estava presente desde o início do envio regular de pastores ordenados.9 A Igreja institucionalizada tinha dois objetivos em relação ao pastorado não-ordenado: prevenção e repressão. Ela empenhar-se-ia para que pastores ordenados assumissem o ministério em comunidades vacantes. Desta forma prevenir-se-ia que estas não fossem ocupadas por pastores não-ordenados. Por outro lado, através do envio de pastores ordenados, paulatinamente ocupar-se-ia o lugar dos pastores não-ordenados.10 Em 1876 já se constatara que essa estratégia estava sendo bem-sucedida.11
A institucionalização da Igreja Evangélica na forma de sínodo caracterizou-se como tentativa de “domesticar” ou “racionalizar” o ministério pastoral, de forma que o sínodo tivesse o direito exclusivo sobre o sacerdócio através da ordenação de pastores; e que somente deveriam ser admitidos como pastores os que tivessem formação teológica em universidade ou seminário. E para que alguém fosse ordenado, exigia-se a formação teológica.12 Assim, a partir de 1864, com a vinda regular de pastores ordenados da Europa, buscou-se introduzir um “novo” modelo de Igreja, que pode ser comparado com a romanização tentada pela Igreja Católica Apostólica Romana. Procurou-se a monopolização da Igreja pelo clero. Concretamente, isso ocorreu substituindo-se o pastor não-ordenado pelo ordenado, o que levou a uma grande distância entre a religiosidade do clero e do laicato.13
As constantes tentativas de implantar o modelo institucionalizado de Igreja enfrentava resistências pelas próprias comunidades. De um lado, muitos dos pastores não-ordenados haviam alcançado confiança de suas comunidades. Principalmente aqueles que exerciam alguma atividade médica paralelamente ao pastorado (“cura”!) eram benquistos pelas comunidades, já que estas normalmente não podiam contar com médicos formados. De outro lado, as comunidades resistiam aos pastores ordenados, alegando que eram caros demais. Finalmente, o modelo do pastorado não-ordenado era de difícil controle. Estes pastores cobravam pelo “serviço” realizado (sepultamento, casamento, batizado). O modelo do pastorado ordenado previa pagamentos dos membros em favor da comunidade, que, por sua vez, pagava seus pastores. Segundo os pastores ordenados, quando membros estavam em atraso com suas contribuições à comunidade, acabavam recorrendo aos pastores não-ordenados, que os atendiam em troca de uma “garrafa de cachaça”. Conclui-se, pois, que, por serem dois modelos tão distintos entre si, fatalmente se chocariam, o que de fato ocorreu constantemente.14
1.2 – Os pastores não-ordenados na ótica dos pastores ordenados
A primeira constatação mais fundamental a ser feita é que o pastorado não-ordenado não repousava sobre um modelo burocratizado, pelo menos não plenamente burocratizado. Isto pode ser percebido, por exemplo, no fato de que os pastores não-ordenados relegaram pouco material documental sobre sua atuação. Assim, a maior parte de fontes sobre o pastorado não-ordenado foi produzida por pastores ordenados. De um lado, isso dificulta a análise daquele modelo de pastorado. De outro, o material produzido pelos pastores ordenados sobre os não-ordenados auxilia-nos a entender a caracterização do pastorado não-ordenado pelo modelo burocratizado e racionalizado. Neste sentido, o pastor Bruno Stysinski escreve:
pseudopastores nós denominamos aqueles que exercem o pastorado de forma medíocre, isto é, desembaraçadamente, sem vocação e ordenação, sem formação teológica e, na grande maioria dos casos, sem os conhecimentos e estudos necessários. No exercício de seu ministério, o invólucro – o talar, o peitilho, a agenda – é teuto-evangélico. O cerne – o ensinamento, a prédica, a vida, a relação pessoal com a comunidade –, no entanto, não é satisfatório nem mesmo em seu aspecto essencial, ao contrário, com muito poucas exceções, deficiente em relação à dogmática, sim, cristãmente, e eticamente indecente. As profissões exercidas no passado pelos pseudopastores são as mais diversas, até mesmo de natureza disparatada. Não se encontra entre eles “teólogos reprovados”. Não, a maioria deles teve profissões que nem sequer permitem sonhar com o pastorado. São ex-artífices, mecânicos empregados de fábricas, agricultores, jornalistas, comerciantes, enfermeiros, oficiais, e sub-oficiais, atores, filhos fracassados de condes e barões e raramente professores de profissão.15
A implantação do “novo” modelo de pastorado (ordenado!) precisava ser justificado em oposição ao modelo existente (não-ordenado!). Em boa parte, esta justificativa se deu a partir da caracterização do pastorado não-ordenado por meio de adjetivos pejorativos, tais como: “pseudopastores”,16 “vagabundos”,17 “lobos”,18 “pastores-cachaça”,19 “mercenários”,20 “aventureiros”.21 Não cabe aqui fazer juízo de valor destes adjetivos, a não ser na seguinte proporção: todos eles (os adjetivos) são usados para justificar o poder e a luta contra os pastores não-ordenados, bem como para justificar o “novo” modelo a ser implantado.
Elementos moralizantes e éticos podem ser percebidos claramente no ataque dos pastores ordenados contra os não-ordenados. Neste sentido, aqueles acusavam estes de terem transformado o ministério pastoral num negócio cômodo e lucrativo. Teriam se tornado pastores por ser preguiçosos para o trabalho braçal e ter alguma habilidade oratória. Eram associados à “imoralidade”: bebedeiras, jogo de cartas, brigas, libertinagem, rudeza, invejas, desordens nas comunidades e coisas ainda piores (?). Por outro lado, onde passaram a atuar pastores ordenados, passaram a reinar civilização, cultura, disciplina e ordem na família, Igreja e escola.22 Assim, por exemplo, menciona-se que
onde até então havia ovelhas desgarradas, agora nasceu um número crescente de comunidades... Onde até então trabalhavam mercenários, agora estão hábeis pastores alemães crentes com o testemunho da Palavra de Deus; onde dominava alheamento comunitário, o interesse comunitário foi reavivado, uma vida espiritual nova foi despertada, igrejas foram construídas e inauguradas, mais intimamente os teuto-evangélicos se uniram e no ano corrente [1868] constituiu-se um Sínodo Evangélico Alemão próprio, que se ligou à Igreja da Prússia.23
Esta citação por si só é merecedora de uma análise sociológica alongada. No entanto, basta que observemos o seguinte: assim como “ovelhas desgarradas” está relacionado com “mercenários”, assim “hábeis pastores alemães crentes” está relacionado com “união” e “sínodo”. Por outro lado, o “novo” modelo trazido pelos “pastores ordenados” representou – na ótica destes! – “hábeis pastores alemães crentes” X “mercenários”; “união” e “sínodo” X “ovelhas desgarradas”.
Poucas vezes, os pastores não-ordenados foram alvo de elogios por parte dos ordenados. Mas isso ocorreu em duas situações específicas. De um lado, atribuíram-se a eles o surgimento e o crescimento das primeiras comunidades evangélicas no Rio Grande do Sul. Assim reconhece um pastor ordenado: “Onde nós agora trabalhamos, ali eles prepararam quase sempre o terreno para nós. Este mérito eles têm, e isso não pode ser minimizado”.24 Por outro lado, o pastor não-ordenado era elogiado quando se autocompreendia como “pastor de emergência”.25 Ou seja, quando se considerava provisório no ministério pastoral e, sem oferecer resistência, cedia seu lugar em favor de um pastor ordenado, quando este chegava.
2 – Uma análise sociológica do sacerdócio
2.1 – A racionalização da religião
Weber ressalta que a urbanização coopera para a racionalização e moralização da religião à medida que a religião beneficia o surgimento de especialistas dos bens de salvação. Princípios éticos, segundo o autor, desenvolvem-se de forma paralela à industrialização, que tem relação quase sempre com a urbanização. Quando, pois, a religião favorece o desenvolvimento do corpo sacerdotal especializado, desenvolve-se também a racionalização da própria religião. Assim ocorre a desapropriação dos que são excluídos pela racionalização. Estes, privados do capital religioso, são qualificados de leigos ou profanos. Daí surge a dissociação do trabalho material e do simbólico, como também o desenvolvimento da demarcação e divisão do trabalho religioso.26
A distinção entre o corpo sacerdotal e os leigos – estes tidos como profanos, ignorantes do religioso e alheios ao sagrado – estabelece o fundamento da oposição entre o sagrado e o profano, entre a manipulação autêntica e legítima do religioso e sagrado e a manipulação profana e profanadora.27 Por isso, Freund diz que a admissão ao corpo sacerdotal exige “a necessidade de uma educação carismática com seu cortejo de noviciados, provas, dignidades e graus na ordenação ou no sagrado”.28 Wach vai um pouco além e afirma:
A organização dos admitidos para o trabalho especificamente religioso (ordenação) pode ser mais ou menos igualitária, ou pode apresentar uma estrutura hierárquica (consagração).29
A ordenação e a consagração, que caracterizam a diferenciação entre clero e leigos, podem, então, ser também compreendidas como parte integrante da racionalização da religião. Por esse motivo, o “princípio do efeito de consagração reside no fato de que a ideologia e a prática religiosa cumprem uma função de conhecimento-desconhecimento”.30
Essa caracterização de sacerdote e Igreja como conhecedores e leigos como desconhecedores, ignorantes do sagrado, leva, pois, ao monopólio através do qual a Igreja pretende perpetuar-se e manter distante outra “empresa de salvação” que ameace esse monopólio. O monopólio, que leva à burocratização e à institucionalização da Igreja, faz com que o sacerdote não precise, a todo momento, comprovar e conquistar sua autoridade diante dos leigos. A instituição Igreja funciona como garantia da manutenção de sua autoridade.31 A manutenção do capital religioso e do monopólio do simbólico só é possível através de uma organização burocrática como a Igreja. Nessa organização burocrática existe uma relação “produção-mercado”, na qual os sacerdotes detêm a “produção dos bens”, e os leigos consomem esses “bens”.32
Muito importante ainda para nossa análise é a questão em torno dos conflitos pela autoridade, que ocorrem entre os especialistas, e/ou a disputa pelo poder no interior da Igreja, que leva à contestação da hierarquia. Se tais conflitos e contestações de um determinado grupo entre o clero são assumidos por um grupo de leigos e por este “traduzidos” em anticlericalismo, contestando o monopólio eclesiástico, então surge a heresia. Por este motivo, o exercício do sacerdócio deve ser confiado a funcionários cuja formação profissional os tenha qualificado de forma homogênea, “capazes de possibilitar uma ação homogênea e homogeneizante”.33 Dessa forma, a ação sacerdotal alcança o objetivo de manter os leigos distantes, convencendo-os de que o sacerdócio exige uma qualificação peculiar e especial, só acessível a pessoas especiais. Os leigos devem ser convencidos de desistir da gerência do religioso em prol do clero dirigente.34
2.2 – Os tipos de dominação
Racionalização, burocratização e institucionalização criam a diferenciação e a oposição entre clero e leigos. Estabelece-se, pois, uma dominação e poder. Weber distinguiu três tipos puros de dominação legítima: tradicional, carismática e legal.
A dominação tradicional pode ser constatada ali onde as ordens e os poderes do “senhor” foram consagrados pela tradição. Neste tipo, existe o “senhor” que ordena e os “súditos” que obedecem. O funcionário é recrutado por causa de sua relação com o “senhor”. A caracterização da relação é pessoal, sendo o recrutado pertencente à mesma linhagem do “senhor”, cliente, colono, ou liberta (recrutamento patrimonial), ou por causa da relação de confiança pessoal ou por ajuste de fidelidade. As relações podem ser compradas ou conquistadas.35
A dominação carismática pode ser reconhecida através dos dons sobrenaturais (carisma) e, especialmente, na capacidade mágica, revelação ou heroísmo, capacidade intelectual ou oratória. O portador do carisma tem a capacidade de apresentar a “novidade”, o extraordinário, o extracotidiano, o inaudito. O tipo que ordena é o “líder”, e o que obedece é o “discípulo”. Para o recrutamento de um líder carismático, são fundamentais o seu carisma, sua vocação pessoal e sua qualidade de liderança.36
Finalmente, a dominação legal encontra seu tipo mais puro na dominação burocrática. Os administradores integram a “empresa” como funcionários através de eleição ou nomeação. A obediência à pessoa não se dá pelo direito próprio que esta possui, mas porque regras e estatutos a tornaram (elegeram/nomearam) “superior”. O funcionário é aquele cuja formação profissional é específica e seu emprego está firmado num contrato, pagamento salarial fixo. Sua posição (social) se dá conforme a hierarquia do cargo e não pela voluminosidade de seu trabalho. E, finalmente, fundamental é o grau de aptidão e competência. Portanto, é dominação baseada no saber.37
Conclusão
O pastor não-ordenado foi caracterizado não raramente pela historiografia como “pseudopastor”, “pastor livre”, “pastor-leigo” e “pastor-colono”. A partir de Weber, o termo “pastor livre” é, em certo sentido, contraditório. Isto porque pastor normalmente está vinculado a uma instituição, organização burocrática, à Igreja. Portanto, não é “livre”, autônomo. A expressão “pastor-leigo” tampouco parece apropriada. Para Weber, o pastor, isto é, o sacerdote, é um especialista, um profissional com qualificação específica ao ministério sacerdotal. Logo ele não pode ser “leigo” e “pastor” ao mesmo tempo. Para a expressão “pastor-colono” vale, pelo menos em parte, a explicação anterior. Por outro lado, parece-nos que nada impede, segundo Weber, que o especialista religioso tenha uma atividade extra, embora o autor não aborde especificamente a questão. A expressão, no entanto, inviabiliza-se pelo fato de nem todo pastor não-ordenado ter sido um colono, como vimos no primeiro capítulo. Quanto ao termo “pseudopastor”, retornaremos abaixo. Bourdieu afirma que
A Igreja tende a impedir de maneira mais ou menos rigorosa a entrada no mercado de novas empresas de salvação (como, por exemplo, as seitas e todas as formas de comunidade religiosa independentes), bem como a busca individual de salvação (por exemplo, através do ascetismo, da contemplação e da orgia).38
No caso do protestantismo rio-grandense, esta “nova empresa” já existia antes mesmo da Igreja propriamente institucional e burocrática. Mas com a vinda desta, a luta contra os pastores não-ordenados pode ser avaliada como uma forma de “monopolizar a salvação”. O fato de se afirmar que a vinda de um pastor ordenado trouxe “união”, “civilização”, “cultura”, “ordem”, “disciplina”, em oposição às reinantes “libertinagens”, “bebedeiras”, “imoralidades”, revela, entre outros, uma maneira de justificar e legitimar o monopólio da “empresa burocrática de salvação”. Revela também a justificativa para impedir e combater o modelo do pastorado não-ordenado.
A questão fundamental de distinção entre o pastorado ordenado e o não-ordenado, sob perspectiva sociológica, é a ordenação, a consagração. Esta foi usada para distinguir claramente entre o pastor especializado e o “não-especializado”. Parece-nos, no entanto, que ela teve uma importância muito mais profunda do que só uma distinção entre dois concorrentes religiosos. Ela foi usada como forma de distinguir os leigos do clero, o profano do sagrado, o desconhecimento do conhecimento. Isto pode ser fundamentado a partir de várias evidências, entre as quais destacamos:
1) Quando um pastor não-ordenado se auto-reconhecia como “pastor de emergência”, não se encontra oposição entre estes e os pastores ordenados. Isso porque o “pastor de emergência”, com a vinda do “pastor ordenado”, volta a ocupar sua posição de leigo. Assim o pastor não-ordenado renuncia a qualquer pretensão sacerdotal de forma efetiva. Neste caso, a ordenação diferencia leigo de clero.
2) A ordenação era uma forma de constituir um “corpo sacerdotal” bastante homogêneo e de ação homogeneizante para, desta forma, não colocar em perigo a hierarquia institucional burocrática: a Igreja.
3) A ordenação está ligada à institucionalização, burocratização, legalização e racionalização da Igreja. É por este motivo que encontramos discussões sobre a ordenação de pastores como uma das questões mais presentes já na constituição de uma Igreja instituída. Desta forma, com a fundação do sínodo surge a pergunta pela hierarquia, monopolização, legalização (regulamentos e ordens!). Neste contexto, a ordenação de pastores formados em seminários e universidades serve como justificativa para desalojar os concorrentes, os pastores não-ordenados.
4) O pastor não-ordenado era normalmente alguém eleito ou nomeado entre pessoas da própria comunidade, possuindo, assim, uma ligação bastante próxima com os seus membros. Ele era um dentre ela. O sagrado e o profano estavam, assim, mais próximos, ou seja, não tão rigorosamente sistematizados, racionalizados e dicotomizados. Através da atuação de pastores ordenados delimitaram-se mais rigorosamente o sagrado do profano, o conhecimento do desconhecimento, o clero do leigo, o pastor da comunidade. Agora o leigo passa a “consumir” o que o pastor ordenado, como especialista, “produz”. Estabelece-se a relação “produção-mercado”.
Quer nos parecer que o modelo de ministério pastoral dos pastores não-ordenados ainda não se caracteriza pela institucionalização e racionalização plenas. Talvez, por isso, pudéssemos dizer que esse ministério pastoral se caracterizou pela “pré-racionalização” e “pré-institucionalização”. Usamos estes termos porque o modelo do pastorado não-ordenado não pode ser distanciado em demasia do modelo dos pastores ordenados. Ele precede o modelo desses na medida em que é um modelo de associação, embora de caráter local. Além disso, caracteriza-se também pela imitação de um modelo já experimentado na Europa antes da imigração dos teuto-evangélicos. Por outro lado, faltam-lhe, entre outros, a qualificação profissional específica.
O pastor ordenado se encaixa no tipo de dominação legal-burocrática por sua qualificação profissional específica, por ser empregado mediante um contrato, por ter salário fixo, por sua dominação basear-se na ordenação e no saber, entre outros. Já o pastor não-ordenado é elevado ao “status de pastor” por causa de sua liderança e carisma – “bom orador” (dominação carismática). Por outro lado, está a serviço de uma tradição, e suas relações são caracterizadamente pessoais (dominação tradicional), mas, ao mesmo tempo, é eleito ou nomeado e pode (ou não!) ter um salário mais ou menos fixo (dominação legal), e assim por diante.
Conclui-se que o pastor não-ordenado não pode ser enquadrado plenamente numa das tipologias propostas por Weber. Contudo, a relação do modelo de pastorado não-ordenado com o ordenado permite-nos caracterizar aquele como sendo uma espécie de “pré-sacerdote”. Trata-se de um agente religioso “leigo” em funções sacerdotais, que exercia seu papel num período de “pré-institucionalização”.
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1Estes pastores foram caracterizados pela historiografia principalmente como “pastores livres”, “pastores-leigos”, “pseudopastores” e pastores-colonos”. Empregaremos o termo pastores não-ordenados, pois, como veremos, foi a ordenação que fundamentalmente diferencia sacerdote e leigo e legitima o sacerdócio numa “empresa de salvação”.
2A rigor, as atuais assim denominadas “comunidades livres”, principalmente no sul do estado do Rio Grande do Sul, são a continuação desse modelo de igreja iniciada no século XIX. Cf. Eliseu TEICHMANN, Imigração e Igreja.
3Cf. Martin N. DREHER, Protestantismo de Imigração no Brasil, p. 119; Ulrich HESS, Pastorado e Pastores no Rio Grande do Sul, p. 21.
4Cf. Martin N. DREHER, op. cit., p. 120 s.; Joachim FISCHER, A Luta Contra os Pastores-Colonos no Rio Grande do Sul no Século XIX, p. 39.
5Assim reza o quarto capítulo do decreto: “‘condições necessárias para que os pastores das religiões toleradas possam praticar atos que produzam efeitos civis.’ A partir de então, ‘os pastores e ministros das religiões toleradas’ somente podiam celebrar ofícios de ‘efeitos civis’ quando a ‘nomeação ou eleição’ dos pastores estivesse registrada nas províncias, junto à secretaria do governo. Para ser registrada como pastor evangélico, bastava que a pessoa em questão apresentasse seu documento de ‘nomeação ou eleição” à repartição governamental, a qual então a incluiria na relação dos pastores registrados”. Cf. Joachim FISCHER, op. cit., p. 35 s.
6Id. ibid, p. 41.
7Este Consistório deveria ser constituído por três pastores evangélicos, dois membros de comunidades e um representante do governo. Cf. Wilhelm WACHHOLZ, “Atravessem e Ajudem-nos”, p. 384.
8Id. ibid., p. 483. Cf. também Id. Ibid., p. 354-59, 386-93.
9Id. ibid., p. 354 s.
10Id. ibid., p. 384.
11Cf. Wilhelm ROTERMUND, Anhang, ap. AEDB, 1876, p. 46. Cf. também AEDB, 1869, p. 6, 17. s, 21; Unser Jahresfest, Der Deutsche Ansiedler, 34 (set.): 68, 1896.
12Cf. Joachim FISCHER, op. cit., p. 46 s.
13Cf. Martin N. DREHER, op. cit., p. 120, 124.
14Cf. Wilhelm WACHHOLZ, op. cit., p. 479, 482.
15Cf. [Bruno STYSINSKI], ap. Die Pseudopfarrer in Rio Grande, Der Deutsche Ansiedler 42 (jun.): 43 s., 1904. Sobre a profissão original destes pastores, cf. também Joachim FISCHER, op. cit., p. 39; Armindo L. MÜLLER, O Começo da Igreja Evangélica no Vale do Rio Pardo, p. 54; AEDS, 1869, p. 5.
16Este termo aparece pela primeira vez no segundo relatório do Comitê para os Alemães Protestantes no Sul do Brasil. Cf. AEDS, 1866, p. 6.
17Cf. MEDS, [c. 9]; AEDS, 1876, p.43.
18Cf. AEDS, 1869, p. 5.
19Id. ibid., p. 44 s.
20Cf. AEDS, 1869, p. 6.
21Cf. Joachim FISCHER, op. cit., p. 40.
22Cf. MEDS [c. 10]; AEDS, 1869, p. 5, 21; AEDS, 1874, p. 17, 29; AEDS, 1876, p. 46; AEDS, 1878, p. 41.
23Cf. AEDS, 1869, p. 6 s.
24Cf. Ferdinand SCHRÖDER, Brasilien und Wittenberg, p. 367. Empregam-se os termos “Notpastor” (pastor de emergência) e “aushilfweise” (auxiliar em caráter provisório). O termo “Notpfarrer” é ainda usado por Prien. Cf. Hans-Jürgen PRIEN, Evangelische Kirchenwerdung in Brasilien, p. 82-85.
25Cf. AEDS, 1874, p. 42.
26Cf. Pierre BOURDIEU, A Economia das Trocas Simbólicas, p. 35-40. Cf. também Pierre BOURDIEU, O Poder do Simbólico, p. 12 s.
27Cf. Pierre BOURDIEU, A Economia das Trocas Simbólicas, p. 43.
28Cf. Julien FREUND, Sociologia de Max Weber, p. 141.
29Cf. Joachim WACH, Sociologia da Religião, p. 188.
30Cf. Pierre BOURDIEU, op. cit., p. 54.
31Id. ibid., p. 58 s., 90.
32Id. ibid., p. 59.
33Id. ibid., p. 66.
34Id. ibid., p. 69.
35Cf. Héctor Luis SAINT-PIERRE, Max Weber, p. 137; Max WEBER, Metodologia das Ciências Sociais, p. 351-53.
36Id. ibid., p. 354-56; Héctor Luis SAINT-PIERRE, op. cit., p. 137.
37Id. ibid., p. 137; Max WEBER, op. cit., p. 349-51.
38Cf. Pierre BOURDIEU, op. cit., p. 58.