Estudos Teológicos 2001, v. 41, n. 3, p. 53-76

A confessionalidade luterana e a questão carismática 1
Martin Weingaertner

Resumo
Compreendendo a confessionalidade como auxílio de orientação, o autor, numa primeira parte, descreve aspectos do cenário brasileiro no qual a igreja luterana caminha como minoria; na segunda parte, faz um estudo de caso, analisando o conflito entre a instituição eclesiástica e a renovação carismática quanto à hermenêutica bíblica, à compreensão do batismo, à uniformidade litúrgica e à pluralidade de ministérios.

Refletir sobre a nossa confessionalidade é tarefa deveras nobre. Nem por isso é fácil encontrar quem o faça, tanto na academia como na igreja. Ao reunirem diversas abordagens dessa temática, os organizadores dessa semana dão um passo concreto para superar tanto a miopia de auto-justificativas como a superficialidade dos slogans confessionais. Creio ser consenso que nem a freqüência, nem o fervor no emprego da palavra "luterano" são, por si só, evidência de luteranidade. No Dia da Igreja do Concílio Geral da IECLB, em Chapada dos Guimarães, MT, no ano 2000, a comunidade cantava: Assim, podemos a tua missão realizar e a fé Evangélica Luterana testemunhar2. Pôde-se ouvir, então, o protesto sonoro do representante da Igreja Evangélica da União de Berlim, o Dr. Wilhelm Hüffmeier, que bradou em alto e bom som: "Não existe fé luterana!".

Na história da Igreja, não são raras as ocasiões em que o recurso à confessionalidade foi usado apenas para questionar opositores eclesiásticos e teológicos. Mas a pergunta pela razão da nossa fé, antes de mais nada, quer levar-nos ao questionamento próprio. Neste sentido autocrítico, a confessionalidade é objeto de pouca reflexão. Resgatá-la é urgente, pois só quem se submete ao auto-exame começa a perceber se continua no fluxo da história de Deus com o mundo. Ou se, à deriva, está rumando para águas estagnadas dum mangue à margem.

Em 1999, fui convidado para fazer dois exercícios de reflexão sobre renovação carismática e confessionalidade na 1a Conferência Luterana do Espírito Santo em Ivoti. Eles foram publicados sob o título Vem, Espírito Santo, vem.3 Uma outra reflexão minha, relacionada à imposição de uma uniformidade litúrgica, está publicada nos Estudos Teológicos sob o título Vestes Litúrgicas ‘Resgatam O Sentido Da Ordenação’?4 .

Antes, porém, de entrarmos no tema específico, quero fazer uma comparação, que ajuda a perceber o rumo que persigo. Quem se transfere para uma metrópole necessita de um mapa com índice remissivo. O índice aponta as coordenadas e, assim, ajuda a localização na complexa amplitude das informações do mapa. Ninguém se movimenta no mapa, muito menos no seu índice. E, além de localizar-se, é preciso orientar-se. Para tanto é preciso descobrir o norte, o que apenas o sol ou a bússola podem fazer. Sem ele continuamos a caminhar desnorteados, uma experiência deveras aterradora, especialmente quando anoitece.

Os Escritos Confessionais Luteranos podem ser entendidos como um índice remissivo elaborado no século XVI. Eles nos ajudam na leitura do mapa da Bíblia. Por ter sido elaborado há quatro séculos, esse índice não contém expressamente todos os tópicos que buscamos hoje, como pneumatologia, escatologia, autoridade da Bíblia, 'fé & ciência'! Mas os Escritos Confessionais nos dão boas pistas quanto à obra de Cristo, à justificação por graça, à fé, etc.. Mas eles jamais pretenderam complementar a Bíblia ou, até, substitui-la!

Como um mapa tem ascendência sobre o seu índice, assim a Escritura tem sobre as confissões. Sem o mapa bíblico, o índice da confessionalidade não orienta. Ele apenas ajuda a situarmo-nos nele. Mas, como no trânsito, localizar-se não basta, pois ninguém vive nas Sagradas Escrituras, nem na confessionalidade. Vivemos nas encruzilhadas da vida. Nelas carecemos, acima de tudo, do sol que orienta, da bússola que norteia. Nas encruzilhadas da vida, só a morte e a ressurreição de Jesus Cristo nos orientam. Quem as discerne lerá com proveito o mapa da Bíblia, bem como o seu índice.

1 – O contexto maior da nossa reflexão

Num primeiro momento, delineio com algumas pinceladas pontos de referência gerais que me parecem importantes para a reflexão detalhada do tema proposto. Quero destacar quatro:

1.1 – A IECLB optou por uma luteranidade light

O considerável contingente de imigrantes procedentes de igrejas unidas e reformadas, que veio a constituir as comunidades que deram origem à nossa igreja, influiu na sua opção constitucional por uma confessionalidade luterana light, ao vincular-se expressamente apenas ao "Catecismo Menor de Martim Lutero" e à "Confissão de Augsburgo inalterada".5 Ambos os documentos juntos perfazem em torno de 10% do texto do Livro de Concórdia. (6)

Numa perspectiva purista, essa redução poderia parecer perda de substância. No entanto, ela tem o mérito de vincular a nossa igreja às ênfases da Reforma do século XVI, sem onerá-la com os complexos conflitos internos posteriores. Entendo que nisso a nossa Constituição segue, mui apropriadamente, o paradigma da própria Confissão de Augsburgo, que preserva o aprendizado da Igreja Antiga, reportando-se aos seus Credos, sem entrar nas polêmicas dessa busca centenária.

Ao professar sua luteranidade dessa forma, a IECLB invoca-a não como formulação polêmica, mas como um denominador comum da fé cristã. Da primeira à última página, o Catecismo Menor articula a fé em termos positivos, e a Confissão de Augsburgo também o faz nos seus 21 artigos iniciais. Essa opção é extremamente positiva, porque, ao mesmo tempo em que nos vincula à Reforma, ela nos liberta de um engessamento pela história e pela cultura, possibilitando inserção missionária aqui e agora.

1.2 – Escritos Confessionais pressupõe igreja moldada pela cristandade

Apesar da cisão da Igreja Ocidental no século XVI em segmentos católico e evangélico, ambos continuaram alicerçados sobre os moldes do ser Igreja estabelecidos a partir do quarto século, que convencionamos chamar de Era da Cristandade. Depois de adquirir seu direito de existência no Império Romano sob Constantino em 313, a Igreja Cristã tornou-se em 380, no reinado de Teodósio, a religião exclusiva do império. A partir de então, passa a desenvolver-se numa simbiose com o estado, loteando toda a Europa em bispados e paróquias, entrelaçados com o poder secular. Assim surgiu o amálgama milenar de Igreja e sociedade, que moldou a Igreja Ocidental tão profundamente.

Da herança desse passado quero destacar três características que continuam a moldar nossa existência como igreja luterana em terras brasileiras:

1.2.1 – As igrejas luteranas pensam liderança eclesiástica como função de Estado, como Amt', dando continuidade à visão milenar do ministério, que sempre privilegiou a dimensão da autoridade sobre as do serviço e da fraternidade. Apesar das ousadas afirmações iniciais de Lutero quanto ao sacerdócio geral dos crentes, (7) a igreja luterana continuaria a formatar o ministério eclesiástico nos moldes clericais praticados no milênio anterior, à exceção dos lugares em que ela viveria sem a retaguarda do Estado (8). No contexto germânico, esta compreensão foi reforçada pela ideologia do funcionalismo público prussiano, que solidificou a função do pastor como “funcionário” da igreja.

1.2.2 – Outra herança desse passado é a compulsoriedade do Batismo infantil. Ainda que alguns escritos de Lutero, como o Catecismo Maior, dêem margem a uma interpretação favorável ao Batismo de adultos, o reformador jamais abandonou a prática do Batismo infantil. Na tradição luterana posterior, essa foi tão compulsória como no contexto católico.

1.2.3 – Por fim, a era da cristandade fez com que as igrejas luteranas não vislumbrassem a possibilidade da existência da Igreja Cristã num contexto religioso plural. Como as resoluções do Concílio Tridentino, também os Escritos Confessionais da Igreja Luterana não contam com uma sociedade que abrigue uma pluralidade religiosa. A máxima cuius regio, eius religio sacramentou a “monocultura” religiosa na paz da Vestfália em 1648. Seu paradigma foi transplantado da Europa para a América Latina, onde continuou sendo um dos parâmetros a partir do qual pensamos Igreja.

Essas marcas da era da cristandade continuam a fazer parte dos referenciais que balizam a vida eclesiástica na IECLB. Mas o pluralismo moderno está a corroê-las. Ainda que tenhamos dificuldades em fazê-lo, precisamos aprender a pensar e a viver Igreja fora da redoma da monocultura religiosa, sem batismo compulsório e sem regalias clericais.

1. 3 – As mudanças geradas pela modernidade

Justamente sua opção pela “monocultura” confessional levaria a Europa às guerras religiosas nos séculos 16 e 17. Estas, por sua vez, fizeram com que a unidade pretendida se desintegrasse de vez, promovendo o advento da modernidade. Nesta, um espaço plural começou a estabelecer-se, não na rotina eclesiástica, mas no universo de idéias, tanto fora como dentro da Igreja. A decepção com a fé levaria os atores desse processo histórico a voltarem-se de Deus para o ser humano; a elegerem, em vez da fé, a razão como denominador comum da verdade. Ao invés da teologia, a matemática se tornaria a ciência suprema.

Ao longo do tempo, o sucesso crescente dessa opção reforçaria a confiança na capacidade humana. O cogito ergo sum acabaria pondo sob suspeita tudo o que não conseguia enquadrar nas coordenadas do tempo e do espaço, inclusive Deus. Assim a fé na razão e no ser humano levou a perguntas às quais os Escritos Confessionais não respondiam. Essa cultura da suspeita possibilitou as mais diversas propostas de “reengenharia da fé”. O filósofo Eduard Spranger (1882-1963) afirma que

No Iluminismo deparamo-nos essencialmente com a primeira tentativa de uma remodelagem da herança da Reforma rumo a valores e fontes de certeza imanentes. Isto precisa ser lembrado, para compreender posteriores reformulações divergentes. (9)

Neste contexto, podemos falar de um secular eclipse da confessionalidade, não de jure, mas de fato, que marcou tanto o iluminismo e o liberalismo como o pietismo e o despertamento. Este desenvolvimento também deixou suas marcas em nossa história.

1.3.1 – Ao privilegiar a razão, a modernidade favoreceu a especialização. Progressivamente, o conhecimento humano foi segmentado, possibilitando o progresso das ciências e da tecnologia, de cujo resultado usufruímos todos. Mas essa racionalização também nos presenteou com frutos adversos. Basta morar no aperto das dependências de empregada de uma mansão, perder-se na mesmice de um conjunto da Cohab ou cair no redemoinho da destruição do meio ambiente, induzido pela manipulação humana, reverso impiedoso do progresso pretendido, para começar a descobrir os efeitos colaterais deprimentes da racionalidade.

Esse processo histórico não ficou à margem da Igreja. Nela, a teologia rumou para a especialização. E quem, por exemplo, toma em mãos a 26ª edição do Novum Testamentum Graece, de Nestle-Aland, poderá apreciar o benefício que um século de trabalho esmerado de especialistas trouxe para a Igreja. Ao mesmo tempo, não há como negar que, ao tornar-se assunto para especialistas, a teologia emigrou da congregação para a academia, reforçando o modelo clerical herdado. Isto, por sua vez, deixaria as comunidades à mercê de um processo de desertificação. Na sua Proposta para uma Nova Constituição da Igreja Protestante no Estado Prussiano, o teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834) já constatava:

Que nossa instituição eclesiástica está numa profunda decadência, ninguém pode negar. A participação viva no culto público a Deus e nas tradições sagradas desapareceu quase totalmente; a influência da consciência religiosa sobre os costumes e sobre a avaliação destes é quase imperceptível; o relacionamento vivencial entre pregadores e suas comunidades praticamente se dissolveu; a repreensão eclesiástica e a disciplina desapareceram por completo; todo o clero, quanto à sua dignidade, encontra-se num declínio contínuo, quanto ao seu propósito propriamente dito, acometido de uma letargia perigosa. (10)

Que as reengenharias teológicas experimentadas por 200 anos não modificaram esse quadro confirma o diagnóstico de um contemporâneo de Schleiermacher, o pregador luterano Ludwig Harms (1778-1855), que formulou sua crítica no sutil trocadilho: Die herrschende Kirchenleere kommt von der herrschenden Kirchenlehre [O vazio dominante na Igreja advém da doutrina dominante na Igreja].

1.3.2 – É óbvio que, no protestantismo, as diversas remodelagens da herança da Reforma rumo a valores e fontes de certeza imanentes gravitassem em torno da interpretação da Bíblia. A partir do iluminismo, no decurso de quase três séculos, construíram-se as mais diversas leituras. Com radicalidade maior ou menor, submeteu-se a Escritura a uma leitura guiada pelos parâmetros da pesquisa histórica, que a submete aos critérios da crítica, da analogia e da correlação, como Ernst Troeltsch (1865-1923) o sintetizou no final do século XIX. (11) Nossa ciência bíblica é fruto dessa caminhada e carrega suas marcas.

De alguma forma, as diversas reengenharias procuraram adequar a leitura da Escritura aos seus propósitos, questionando a normatividade do cânone, mas sem afrontar explicitamente o sola scriptura da Reforma. Isto parecia lícito em vista do embate da Reforma com Roma quanto à interpretação da Bíblia. Mas a questão da autoridade das Escrituras não era um assunto polêmico entre os adeptos da Reforma e de Roma. Uma idéia aproximada desse consenso quanto à autoridade da Bíblia no século XVI encontramos na encíclica Dominus Jesus, de 2000. No meio católico, a compreensão da autoridade das Escrituras manteve-se relativamente imune à modernidade. Mas o protestantismo rompeu com esse consenso, usando a distinção entre “lei e evangelho” de Lutero como legitimação formal para as suas próprias releituras .

1.3.3 – Consciente ou inconscientemente, a leitura dos Escritos Confessionais também foi modificada por esse cenário. Assim, as mais variadas interpretações podem dizer-se luteranas. Há quem ressalte o protesto contra o papado, a sua contribuição à cultura alemã ou ao pensamento crítico ou à ecumenicidade, à cristocentricidade, à autocrítica. Assim, de modo crescente, tornou-se indefinido e dependente das opções filosóficas o que entendemos por confessionalidade luterana.

Dois exemplos: a decisão pela luteranidade da IECLB foi amadurecida, entre outros, por Hermann Dohms e outros nas décadas de 30 e 40 do século passado, isto é, no auge e no ocaso da ideologia do pangermanismo. Não há como ignorar que a motivação teológica dessa opção pelo luteranismo estava profundamente embebida pelo pangermanismo; afinal de contas, Lutero era alemão e Calvino, francês! – Quem viaja hoje do Paraná a Rondônia pode ver como a nossa fama de igreja dos alemães foi substituída com sucesso pela identificação de igreja dos gaúchos, com direito a bombacha, chimarrão e ”kerb”.

1.4 – A separação de Igreja e Estado

A separação de Igreja e Estado estava na agenda da modernidade. Ela começou a ser implementada com a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos da América. No Brasil, ela foi implantada de jure na Proclamação da República, em 1889, mas seus efeitos práticos somente começariam a impor-se meio século mais tarde. As cidades da Era Colonial têm apenas a Igreja Católica na praça. Já os projetos de colonização do final do século XIX no sul do país acrescentaram, no paço municipal, uma igreja evangélica. Porém, da segunda metade do século passado em diante, proliferaram templos das mais diversas denominações em todas as áreas urbanas, mormente na periferia, sem falar dos centros da umbanda e do espiritismo.

A implementação da liberdade religiosa demarca o fim da simbiose de Igreja e Estado pela desintegração progressiva das igrejas territoriais, viabilizando o surgimento de uma sociedade pluralista. Embora iniciado na Europa e nos Estados Unidos, esse processo andou numa velocidade muito maior no Brasil em virtude de sua história mestiça.

1.4.1 – Esta separação de Igreja e Estado viabilizou a IECLB num país que era reserva de domínio católico. Porém, originários de um país que vivia a simbiose de Igreja Evangélica e Estado, os imigrantes não precisaram modificar muito o seu conceito de Iigreja. Nas colônias, a família assumiu a função do território. Passamos a identificar as pessoas não mais pela procedência de uma região evangélica ou católica, como era praxe na Europa, mas pela descendência biológica de uma família evangélica ou católica.

1.4.2 – Por causa da sua identidade sociológica, Paul Freston descreve a IECLB como a “Igreja Católica da imigração protestante alemã” (12). Por isso, a abertura religiosa afetou nossa igreja com impacto semelhante ao sofrido pela Igreja Católica. Já no início dos anos noventa, ele constatava que a IECLB perdia sua clientela histórica com a mesma rapidez da Igreja Católica, à medida que os corrosivos do pluralismo urbano desintegram o vínculo da germanidade e das tradições herdadas, processo que é agravado pela nossa condição de minoria. Essa aflição comum talvez explique tanto a preferência da IECLB pelo diálogo com a Igreja Católica, como a insegurança no trato da igreja evangélica brasileira, majoritariamente pentecostal / carismática. Quem retinha reserva de mercado e tinha lugar certo na praça sente-se ameaçado com a concorrência que chega.

A IECLB veio a experimentar essa mudança de cenário pela vertiginosa expansão da fronteira agrícola e pelo intenso processo de urbanização. Ambos deslocaram contingentes expressivos e crescentes das redomas históricas de "monocultura" religiosa para dentro da sociedade brasileira, cada vez mais disposta a assumir a sua centenária pluralidade cultural e religiosa. Ao mesmo tempo, essa pluralidade passou a ser veiculada pela mídia numa embalagem pós-moderna para dentro dos redutos históricos mais isolados e homogêneos da nossa igreja.

Delineei esses aspectos do cenário, porque eles interferem em nossa reflexão sobre a confessionalidade. Plantada há quase dois séculos em terras brasileiras, a IECLB guarda a herança medieval do sistema paroquial, do clericalismo, do batismo infantil compulsório e da monocultura religiosa. Ela também é herdeira da modernidade e dos seus questionamentos e interpretações. Por fim, ela sofre pesadamente o impacto da sociedade pluralista que emergiu da separação de Igreja e Estado, provocando a perda da sua identidade cultural e racial. Estamos vivendo num ambiente novo, plural. Nossa reflexão teológica e nossa prática eclesial estão pasmos diante dele. Que aprendizados do passado devem ser mantidos? Como avaliar o relativismo à nossa volta? Seguindo a regra apostólica de pôr à prova todas as coisas e ficar com o que é bom (1Ts 5.21), podemos testar se o índice luterano ajuda a orientar-nos no mapa bíblico para viver com essa história neste Brasil.

2 – A confissão luterana e a questão carismática

Quero especificar agora aspectos da nossa confessionalidade em vista das expressões carismáticas em nosso meio e à nossa volta. Se sou a pessoa indicada para fazê-lo, é uma pergunta legítima, pois caracterizar-se a si mesmo como “carismático” é suspeito. E um enquadramento por terceiros não é menos questionável. Em 1995, num debate transmitido pela CBN sobre "O chute da santa", fui surpreendido por um jornalista, segundo o qual “dois superiores” meus lhe confirmaram que eu não era “luterano”, mas "pentecostal". Já na Conferência em Ivoti, em 1999, um irmão muito querido me abordou como "semicarismático". Creio que num aspecto ambos os interlocutores têm razão. Eu sou grato a Deus que a nossa língua portuguesa distingue entre ser e estar. Tanto o luteranismo como o carismatismo podem demarcar a ambigüidade do nosso “estar”, mas não a identidade do nosso “ser”, que pertence a Cristo.

Para não ficarmos à mercê de minha subjetividade e dar alguma objetividade a esta exposição, proponho refletir uma questão real, seguindo quatro assuntos levantados pela Ação Disciplinar do Sínodo Sudeste contra o pastor Eldo Schreiber, de Cosmópolis, São Paulo (13). É nos termos das suas acusações que a questão carismática está sendo discutida em muitos grêmios da IECLB. Apesar de instruir uma ação disciplinar, o Sínodo Sudeste faz acusações que tem o perfil de divergência doutrinária. Justamente por isso elas se prestam para uma reflexão como a presente. Como o processo continua sub judice, restrinjo-me a documentos que são de domínio público. Abordarei quatro assuntos questionados em seis das sete acusações levantadas.

2.1 – A autoridade na Igreja

A questão da autoridade na Igreja configura-se numa questão crucial no relacionamento da instituição com a renovação carismática. Duas das sete acusações estão diretamente relacionadas a ela: o fazer acusações à IECLB e a suas instituições, indispondo lideranças e membros contra elas (14) e a desobediência aos documentos normativos da IECLB, em especial, a não-aceitação do documento “A IECLB e o Pluralismo Religioso”. (15)

Em carta ao Sínodo da Amazônia, o presidente do Sínodo Sudeste explica que a suspensão preventiva de 90 dias aplicada ao pastor Eldo Schreiber em 14 de dezembro de 2000 foi adotada em relação a quem se colocou contra a espinha dorsal de uma estrutura organizacional: as normas, regulamentos e demais documentos normativos que pretendem tornar nossa IECLB uma igreja uniforme no Brasil.(16) Uma notícia no jornal O Caminho especifica como cerne do conflito: O Pastor não estava acatando a orientação teológica manifestada no documento ‘A IECLB e o Pluralismo Religioso”(17).

Ainda que estas frases expressem a emotividade de uma das partes da ação, vale a pena seguir a sua pista para discernir os argumentos subjacentes.

Na carta aberta aos membros das comunidades de Cosmópolis e Artur Nogueira, na qual explicam a suspensão do seu pastor, o Presidente Sinodal e o Pastor Sinodal do Sínodo Sudeste, em conjunto, respondem a essa pergunta. Afirmam que, na conceituação luterana, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas a Bíblia contém a Palavra de Deus. O texto bíblico veicula a vontade de Deus, mas não pode ser lido ao pé da letra. Ele exige interpretação. (18)

A julgar pela repercussão obtida, a diretoria do Sínodo Sudeste não está sozinha na percepção desta área de conflitos, pois a questão da autoridade na Igreja voltou a ser abordada, meses depois, pelo Pastor Presidente na carta pastoral sobre a unidade na IECLB. Nela ele afirma que os documentos orientadores auxiliam obreiros e obreiras a dar resposta sobre a nossa fé evangélica de confissão luterana, em meio ao atual mundo religioso (19). Nisto ele certamente pode contar com a anuência também do segmento carismático. Porém, quando ele afirma que não basta dizer que a Bíblia é a única norma (20) e, mais, quando conclui sua missiva, afirmando que os documentos orientadores definem a releitura necessária e legítima dos documentos normativos. ... e, por conseguinte, devem ser estudados e observados (21), ele com igual certeza pode esperar discordância e protesto não somente, mas certamente, dos carismáticos.

Segundo estes pronunciamentos de dois níveis distintos da nossa liderança eclesiástica, o “x” da questão reside na interpretação da Bíblia. Subentende-se que o texto bíblico, na Igreja luterana, carece da interpretação definida pelos documentos normativos e orientadores das instâncias eclesiásticas. Por isto as afirmativas A Bíblia não é a Palavra de Deus, mas a Bíblia contém a Palavra de Deus e não basta dizer que a Bíblia é a única norma em conexão com a afirmação enfática da normatividade dos nossos documentos eclesiásticos tocam no cerne de uma questão.

Fica-se a perguntar pelos motivos desse empenho quase que orquestrado em defesa dos documentos normativos e orientadores, a esta defesa da lei e da ordem. Por que o mapa da Bíblia já não basta à igreja do Sola Scriptura? Por que está-se a advogar uma releitura necessária e legítima dos documentos normativos, a saber da Bíblia e do Catecismo Menor e da Confissão de Augsburgo? Quem canta a plenos pulmões Pois o rei do mal, de força infernal, não dominará; já condenado está por uma só palavra. O Verbo eterno vencerá as hostes da maldade. As armas o Senhor nos dá: Espírito, Verdade (22) necessitará de outro instrumento?

Deveremos olhar mais de perto em que o enfoque da leitura bíblica carismática difere daquela a qual nossas autoridades eclesiásticas se reportam, para então avaliar a questão sob uma perspectiva confessional.

Desde os seus primórdios, o pentecostalismo questionou, não na teoria, mas na prática, a hegemonia da razão como parâmetro da fé. Ele nega que a razão e, com ela, a academia detenham a chave hermenêutica que define o que é Palavra de Deus e o que não. Protesta contra a hegemonia da causalidade e da analogia como critérios últimos da verdade. Isto se expressa na redescoberta do milagre como expressão inalienável da intervenção de Deus na história. Nisto a redescoberta da terceira pessoa da Trindade e a sua manifestação poderosa no presente resulta na percepção do sobrenatural: o milagre, a cura, a expulsão de demônios, a libertação, a experiência da oração atendida.

Essa percepção do sobrenatural certamente pode perder de vista a Cristo e a sua cruz. Quem passou fome e sede no deserto e prova a renovação da vida por Deus poderá ficar deslumbrado com o milagre. É esta a imagem que as igrejas virtuais da TV repetem ad nauseam. Mas quem convive com a Igreja de carne e osso não verá atropelo de milagres. Verá, isto sim, que uma leitura da Bíblia ao pé da letra, que conta com o Deus do milagre, por via de regra, leva ao reconhecimento e à confissão de pecados, à aceitação confiante da obra redentora de Jesus na cruz e na ressurreição e gera renovação de vida. É verdade que uma estrutura eclesiástica percebe pouco disso, mas sua contabilidade registra os dividendos expressivos dos seus dízimos.

Essa pregação resiste a um controle de qualidade luterano?

No contexto luterano, costuma-se desqualificar uma leitura bíblica de duas maneiras: ou é classificada como “teologia da glória” ou denegrida como “fundamentalista”. Mas, em ambas as variantes, pode-se estar dizendo mais sobre a própria leitura bíblica do que sobre a dos outros.

Uma das perguntas fundamentais a ser feita a qualquer leitura bíblica é acerca de quem detém a chave de interpretação. Se ao ler sua Bíblia o carismático sabe que não lhe cabe interpretá-la, mas que importa que Deus use as Escrituras para interpretar a sua vida pelo Espírito Santo. Se assim for, ele estará em sintonia com o ensino da Reforma. Onde Deus interpreta a nós pela Escritura, haverá frutos visíveis, nascerá a “fé ativa no amor”. No seu artigo 5º, a Confissão de Augsburgo diz que Deus pelo “ofício da pregação” “dá o Espírito Santo que opera a fé, onde e quando lhe apraz, naqueles que ouvem o Evangelho”. E quem ouve o “Evangelho, o qual ensina que temos, pelos méritos de Cristo, não pelos nossos, um Deus gracioso” (23) é capaz de perceber a leitura legítima da Escritura. Quem vê a luz do sol aprende a ler o mapa da Bíblia sem consultoria, de modo que Lutero insiste que a reta pregação seja avaliada, antes de mais nada, pelos próprios ouvintes do evangelho (24). Por isto mesmo uma avaliação institucional dum pregador que dispensa o parecer qualificado da comunidade jamais é luterana.

Uma segunda pergunta que a Reforma ensina a fazer à leitura bíblica é se ela conduz a Cristo. Em seu livreto “A liberdade Cristã” (25) Lutero descreve de maneira mui singela como Cristo, a Palavra por excelência, se dirige a nós na palavra do Antigo e Novo Testamento, impactando-nos como lei e evangelho. Esta distinção fundamental, segundo o reformador, não vem de um filtro que impomos à Escritura, mas advém dela própria. Ao fazerem uma leitura cristológica das Escrituras, os próprios apóstolos nos ensinam o padrão de qualquer releitura posterior. Por isso o reformador insiste que a leitura da Bíblia nos conduza a Cristo, gerando temor a Deus e arrependimento, fé e obediência. Assim uma leitura “ao pé da letra” , que segue nesse rumo e produz esses frutos, tem, sim, respaldo confessional.

Como a Igreja Antiga, a Reforma Luterana reconhece a autoridade apostólica da Escritura. O Reformador viabilizou o acesso à Bíblia para que, na mão do povo, ela pudesse servir efetivamente norma normas. Os demais documentos e práticas são "norma normata", isto é, normas essencialmente criticáveis a partir da Escritura. Por isso, Lutero, ao queimar a bula papal, queimou também volumes do Direito Canônico, documentos normativos e orientadores da Igreja Romana. Nessa função de cânone, a Escritura é senhora sobre nossa leitura e prática. E justamente uma leitura ao pé da letra não pode esquivar-se da crítica que lhe advém da própria Bíblia. Onde alguém afoitamente prometeu cura a um enfermo que não houve, terá de calar-se diante da justa reclamação Senhor, tem misericórdia do meu filho... Eu o trouxe aos teus discípulos, mas eles não puderam curá-lo e suportar a severa repreensão do Mestre (Mt 17.15ss)! Da mesma forma terá de calar-se quem deixa homens e mulheres em sua aflição, porque sua douta leitura bíblica não conhece as Escrituras e o poder de Deus (Mt 22.29).

No limiar entre modernidade e pós-modernidade, podemos ficar ou imobilizados pela causalidade a ponto de nem contarmos com a intervenção divina. Também é possível empolgar-se com a descoberta do agir sobrenatural de Deus e passar a ignorar a natureza e a história nas quais Deus também age. Neste caso, substitui-se o racionalismo do cogito ergo sum pela irracionalidade do credo quia absurdum. Assim, diante dum diagnóstico médico, podemos ficar acometidos de uma letargia tal que não conseguimos mais orar sinceramente pelo enfermo. Ou, então, tão empolgados com a expectativa da cura divina a ponto de tornar-nos reticentes ao tratamento médico. Na primeira situação, o enfermo acaba sendo tentado a buscar algum curandeiro “por fora”; na segunda, quando a cura não acontece, instala-se uma crise de fé na busca, furtiva ou não, de tratamento médico!

Carismáticos e evangelicais têm muito a aprender do Reformador alemão, que lia a Bíblia com piedade e oração reverente, com bom senso e reflexão. Não se adonou da Escritura, mas permaneceu seu aprendiz. Ele não ignorou a cruz, dispondo-se ao sofrimento, e esperou pela manifestação da glória eterna em alegria confiante. Em vista do seu ensino também não podemos deixar de perguntar se a leitura que apregoa que a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas a Bíblia contém a Palavra de Deus realmente resiste a um exame pelos critérios dos Escritos Confessionais? Ela realmente expressa o was Christum treibet de Lutero ou estabelece o cogito ergo sum da era moderna como medida e intérprete de todas as coisas? É lícito perguntar pelos seus frutos, e pelas comunidades que ela edificou?

Por fim, ainda, duas observações deveras curiosas. Quem observa esse embate de leituras bíblicas na IECLB não pode deixar de notar que o protesto nervoso dos leitores críticos da Bíblia está ficando veemente a ponto de justificar medidas de exceção contra quem ensina muitos a lerem a Bíblia “ao pé da letra”. Outro fato inesperado surpreende nessa polêmica: Justamente quem advoga uma leitura crítica da Bíblia quer impor uma leitura fundamentalista das normas e orientações eclesiásticas, incriminando qualquer questionamento dos documentos eclesiásticos. Enquanto isso, quem lê a Bíblia ao pé da letra advoga uma leitura crítica dos pronunciamentos eclesiásticos, não assentindo ao Roma locuta, causa finita.

2.2 – O Batismo e a dádiva do Espírito Santo

Uma segunda incriminação levantada contra Eldo Schreiber é tematizada por outras duas acusações: a Introdução de uma linha pastoral com feições carismáticas e/ou neopentecostais com a conseqüente divisão da comunidade entre tradicionais e renovados/avivados (26) e o Suscitar dúvidas e inquietações no seio das comunidades... em relação à prática do batismo, revelações, curas e exorcismos. (27) Esta última acusação é, literalmente, centenária. Já foi levantada contra o pietismo do século XVIII e contra o despertamento do século XIX por causa da sua insistência na conversão! Em relação aos carismáticos, ampliou-se o leque das inquietações às revelações, curas e exorcismos.

Restrinjo-me aqui ao conflito em torno do Batismo. A meu ver, essa questão é agravada por um fator externo: a desintegração do modelo de Igreja da era de cristandade e a diluição da praxe de Batismo infantil compulsório pelos corrosivos da pós-modernidade. Vivemos uma curiosa situação: Quem questiona o Batismo infantil normalmente estaria em condições de ensinar a Palavra a seus filhos. Enquanto que a maioria dos que buscam batizar seus filhos não assume qualquer compromisso com o ensino da Palavra, a despeito de prometê-lo.

Um segundo fator externo que deve ser levado em conta em nossa reflexão é o que a desvinculação de fato do Batismo e da Palavra gerou em nosso país em quatro séculos. A compreensão do Batismo ex opere operato do catolicismo tridentino dispensou a evangelização. Pela ausência do ensino da Palavra abriu-se espaço para os mais diversos sincretismos no catolicismo popular, na umbanda, etc. Nesse cenário, a nossa própria praxe batismal com raízes na mesma compulsoriedade nunca chegou a diferenciar-se pela sua vinculação à Palavra como o Catecismo Menor o ensina, dando margem aos sincretismos semelhantes à nossa volta.

Uma avaliação teológica dessa realidade eclesial ainda está por ser feita. Uma coisa, no entanto, é evidente: uma reflexão séria terá de levar em conta mais do que o que rezam os manuais litúrgicos, olhando também para o que se faz com eles na prática eclesiástica. Da história de Israel sabemos que a circuncisão, instituída como sinal da aliança (Gn 17), chegou a ser desvirtuada como instrumento de auto-justificação, a ponto de Paulo chamá-la de falsa circuncisão, de mutilação (Fp 3.2). Isso deveria induzir-nos a buscar uma prática responsável tanto do Batismo de crianças como de adultos.

Atualmente podemos encontrar, em nossa igreja, duas avaliações conflitantes quanto ao Batismo. Quem pensa mais num horizonte tradicional de cristandade pode continuar afirmando:

Nenhuma pessoa tem licença para não ser batizada e nenhuma comunidade tem licença para recusar o Batismo a alguém. Se rejeitamos o Batismo, rejeitamos a obediência a Deus e rejeitamos a comunhão dos batizados/as. O Batismo de crianças, no entanto, nos revela um sinal da graça incondicional e livre de Deus... Não há dúvida que faz parte desta opção pelo Batismo de crianças a preocupação com a educação das mesmas, ou seja, como possibilitar que elas possam trilhar um caminho que possa levá-las ao "sim" consciente à declaração de amor e proteção dada por Deus no Batismo. (28)

Pano de fundo de afirmações como esta é que o Espírito Santo nos é dado no ato litúrgico do Batismo. Ainda que na Declaração Sólida da Formula Concórdia haja uma afirmação obscura que dê margem a tal interpretação (29), parece-me que aqui nos deparamos com influências diretas do catolicismo pós-tridentino e seu ensino da gratia infusa.

Quem vem de uma experiência de renovação protesta contra essa interpretação do Batismo em virtude da obra realizada. Sem dúvida alguma, este protesto origina-se na biografia de quem experimentou a renovação. Por via de regra, batizado de criança, ou não recebeu instrução na fé ou, então, a instrução recebida surtiu efeito contrário. Em todo caso, quem experimentou na própria carne o que a Apologia da Confissão diz acerca dos filhos de Adão que por natureza desprezam a Deus, duvidam da sua palavra, da sua promessa e suas ameaças 6. Marcados pela experiência desse abismo que os separava da fé, tanto evangelicais como renovados questionam as propostas institucionais de querer superá-lo por didáticas, pedagogias ou conscientizações. Esse protesto continua válido também quando evangelicais e renovados, eles mesmos, sucumbem a métodos “espirituais” ou técnicas de edificação.

Ainda que conversão e Batismo do Espírito Santo gerem tensões entre a perspectiva renovada e evangelical, ambas afirmam que somente a intervenção poderosa e soberana do Espírito Santo gera mudança. Ambas discordam do entendimento do batismo ex opere operato, que dispensa a resposta consciente do crente e que, além disso, a denigre como obra. Nessa argumentação também se pode recorrer aos Escritos Confessionais. Conversão e renascimento são tratados amplamente neles. Confira-se, por exemplo, o que a Declaração sólida detalha a esse respeito em Do livre arbítrio no inciso 8º (30). Quanto à uma compreensão ex opere operato dos sacramentos, vale a pena citar a Apologia no Artigo IV: Da justificação § 62ss:

Essa fé, que erige e consola naqueles pavores, recebe a remissão dos pecados, justifica e vivifica. Pois aquela consolação é vida nova e espiritual. Isto é plano e perspícuo, podendo ser entendido pelos piedosos, e tem testemunho da igreja. Em parte nenhuma podem os nossos adversários dizer como é dado o Espírito Santo. Imaginam que os sacramentos conferem o Espírito Santo ex opere operato, sem movimento bom da parte de quem recebe, como se fosse deveras coisa ociosa a dádiva do Espírito Santo. Quando porém, falamos de fé que não é cogitação ociosa, mas que liberta da morte e produz vida nova nos corações, sendo obra do Espírito Santo, [que] não coexiste com pecado mortal, mas produz bons frutos tanto tempo, quanto está presente conforme diremos adiante. Que de mais simples e claro pode dizer-se respeito à conversão do ímpio e ao modo da regeneração. (31)

Neste sentido, a Confissão de Augsburgo no artigo IX diz, mui acertadamente, que pelo Batismo se oferece graça, mas não que o Batismo graça! O conceito da “graça infusa” é do Concílio de Trento! Como devemos entender corretamente a relação de Batismo, conversão e Batismo do Espírito é um capítulo em aberto. É evidente que, com o fim da era da cristandade, num país onde a Igreja Católica por séculos batizou sem evangelizar e a maioria dos evangélicos é batizada de adultos, haveremos de reavaliar o que este artigo da Confissão de Augsburgo diz do Batismo infantil. Certamente seria ilegítimo ignorar que Deus tem chamado pessoas batizadas de criança para uma vida plena na fé, mas também não é sustentável continuarmos a interpretar nossa praxe de Batismo infantil como se ela correspondesse ao mandamento bíblico.

2.3 – A unidade da Igreja e a liturgia

Uma terceira área em que se condensa o conflito com o segmento carismático é a questão da unidade da Igreja e da uniformidade litúrgica. Também este tópico não é tão novo assim, pois, no passado, ele tem sido discutido também. Mas, agora, pela primeira vez, ele é motivo de uma ação disciplinar, denunciando-se o abandonar símbolos litúrgicos e vestes litúrgicas de uso comum na IECLB (32).

Inicialmente, devemos observar que essa divergência é afetada profundamente pela dissolução das nossas redomas eclesiásticas no processo de integração da nossa sociedade pluralista. Enquanto as redomas eclesiásticas continuam intactas, suas particularidades culturais permanecem incontestes. Mas quanto mais nossas comunidades passaram a viver como minorias cada vez menos expressivas, em meio à nossa cultura urbana mestiça e pluralista, elas vão perdendo o vínculo com a tradição dos seus antepassados.

Não é difícil entender que a partir disso se estabelece um conflito entre os que querem manter de alguma maneira a identidade da tradição e os que querem reavaliar a bagagem por estar mais engajados na missão. Também não é de estranhar que esse conflito se torne mais acirrado justamente lá onde a igreja está se tornando mais morena, nem que os mais ferrenhos defensores da tradição sejam pastores!

Para elucidar o que a confessionalidade luterana tem a dizer neste particular, sou obrigado a cunhar um neologismo. Entendo que quem insiste na uniformidade litúrgica está, na verdade, propondo uma McDonaltização da Igreja. O já citado propósito de tornar nossa IECLB uma igreja uniforme no Brasil de modo que quem entre em qualquer templo da IECLB... possa dizer: ‘Aqui estou em minha casa” (33), é uma versão eclesiástica da proposta das lanchonetes da rede americana: cores, símbolos, copos, refrigerantes, uniformes e até o jeito de fazer e o tempo de preparar os Big Mac’s são iguais. Tudo foi estudado por papas do marketing e determinado em detalhes às franquias. Seu investimento no visual uniforme é impressionante e bem-sucedido, pouco importa o efeito colateral dum cardápio à base de gorduras e carboidratos que propaga obesidade norte-americana mundo afora.

O que quero dizer com isto? Que a proposta da uniformidade litúrgica e sua imposição são um duplo equívoco, pois a igreja luterana nunca impôs um visual, mas sempre zelou pelo cardápio! Nem a uniformidade litúrgica nem a imposição eclesiástica são paradigmas luteranos! Cinco anos antes da Confissão de Augsburgo, Lutero escrevia em sua Missa e ordem do culto alemão com muita clareza a esse respeito:

Em primeiro lugar eu gostaria de pedir gentilmente e por amor de Deus a todos os que vierem ou quiserem seguir esta nossa ordem no culto, que de forma alguma façam dela uma lei rígida, nem enredem ou prendam a consciência de ninguém, mas que a usem na liberdade cristã enquanto, como, onde, quando e por quanto tempo acharem conveniente e útil. Pois também não a estamos publicando com a intenção de nos impor a alguém ou de lhe querer legislar... (34)

Com coerência, a Confissão de Augsburgo conclui no artigo VII: E para a verdadeira unidade da igreja Cristã não é necessária que em toda a parte se observem cerimônias uniformes instituídas pelos homens. (35) Se ela diz isto no horizonte da Alemanha, um país étnica- e culturalmente uniforme e de pequena extensão territorial, quanto mais poderemos afirmá-lo de nosso vasto e heterogêneo Brasil. E os reformadores luteranos não ensinaram a uniformidade litúrgica porque o Novo Testamento não a promove. Nele a transposição da fronteira cultural do judaísmo para o helenismo estabelece para a Igreja em todos os tempos o paradigma da unidade no Evangelho, em fé, amor e esperança. Por isso a Confissão de Augsburgo conclui com propriedade que

... para a verdadeira unidade da igreja cristã é suficiente que o evangelho seja pregado unanimemente de acordo com a reta compreensão dele e os sacramentos sejam administrados em conformidade com a palavra de Deus. (36)

Creio ser possível conversar sobre liturgia e costumes na IECLB a partir dessa base, respeitando, por um lado, os condicionamentos históricos das gerações mais velhas e, por outro lado, tendo abertura para as adequações culturais necessárias para a missão em nossa sociedade. O próprio Senhor Jesus recomenda a agir com sabedoria e bom senso ao dizer: Todo mestre da lei instruído quanto ao Reino dos céus é como o dono de uma casa que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas (Mt 13.52). Os legalistas de qualquer época ou matiz, no entanto, ou insistirão em pôr vinho novo em vasilha de couro velha para preservá-la a todo custo, ou, então, ao porão, vinho novo em vasilha de couro nova, ignorando que o vinho velho é melhor! (Lc 5.36ss.).

2.4 – As vocações e o ministério eclesiástico

Uma quarta questão polêmica é a Contratação e apoio de pessoas denominadas “obreiros” que não têm formação teológica reconhecida pela IECLB (37). Nesta acusação, afloram tensões. A sensibilidade dessa questão foi potenciada pela revisão dos ministérios que a IECLB está processando nos últimos anos. A diversidade de ministérios foi decidida em Concílio, mas ainda não foi digerida, mormente pela classe pastoral. Somente a partir desse pano de fundo maior é possível vislumbrar, porque se considera “obreiros” comunitários como um dirigente do louvor e do trabalho com jovens, uma ameaça.

A meu ver, não estão em discussão uma heresia proferida por algum obreiro nem o regime trabalhista da sua contratação, mas a falta de formação teológica reconhecida pela IECLB, de longa data instrumento eclesiástico para a manutenção da reserva de mercado pastoral. Três séculos atrás, este já foi o argumento usado contra a atuação do “leigo” Zinzendorf. Nosso paradigma pastorcêntrico tolera “auxiliares”, mas não “obreiros” ou “cooperadores”. E seu nervosismo aflora sempre que numa comunidade recomeça a brotar o sacerdócio geral.

Justamente isto acontece no avivamento e na renovação. Que muitos membros descobrem os seus dons e passam a exercer um ministério é um dos seus grandes méritos. A justificação por graça estabelece uma comunhão fraternal, que somente conhece a hierarquia do próprio Cristo. As funções de liderança não elevam ninguém acima dos demais, mas submetem quem as exerce ao amor, serviço e sofrimento. A divisão pagã de sacerdotes e leigos, herdada e assimilada do Império Romano, foi identificada pela Reforma como desprovida de fundamento bíblico. A diferenciação entre as funções dos crentes reside não na sua essência, mas na incumbência divina e comunitária. Lutero chega a afirmar:

Sim, um cristão tem tanta autoridade que até no meio de cristãos pode e deve entrar em cena e ensinar, mesmo que não convocado por pessoas, quando vê que o professor ali está ensinando errado; entretanto deve proceder de forma modesta e decente. (38)

Assim, uma das tarefas mais nobres de um pastor luterano deveria ser a de apoiar, de animar, de ensinar e de orientar esses cooperadores na vinha do Senhor. Confira o que Lutero diz a esse respeito na Missa e Ordem do Culto Alemão:

...eu gostaria de treinar jovens e pessoas que também pudessem ser úteis a Cristo em outros países... O Espírito Santo ... não esperou até que todo o mundo veio a Jerusalém e aprendeu hebraico, mas deu as mais diferentes línguas ao ofício da pregação, assim que os apóstolos pudessem falar onde quer que fossem. Eu prefiro seguir este exemplo. É também razoável que a juventude seja treinada em muitas línguas, pois quem sabe como Deus pode precisar dela no futuro? (39)

Apesar de o reformador da Silésia, o “entusiasta” Kaspar von Schwenckfeld (1489-1561), procurar convencer Lutero (40), o reformador não acolheu a sua proposta de estabelecer congregações dos que querem ser cristãos com seriedade e que confessam o evangelho com mãos e boca. (41) Ele reconhece a legitimidade do modelo de Igreja ao qual se adere por convicção, mas não o promoveu por dois motivos: Lutero diz que ainda não tenho pessoas e gente para isso e, em segundo lugar, ele temia que organizá-la no contexto de cristandade de então poderia resultar em seita. (42)

A implementação de fato da Reforma, no entanto, fez com que, por toda parte, os pastores dessem continuidade ao molde paroquial e clerical herdado, submetido, agora, ao príncipe como regente da Igreja. Somente na diáspora, onde a igreja luterana não se tornou igreja de Estado, ela elaboraria modelos de liderança mais participativos. Nos territórios luteranos, porém, o sacerdócio geral dos crentes teve sempre uma função decorativa. Mesmo assim, ele sempre de novo irrompeu como vulcão também nessas igrejas de Estado, basta lembrar a atuação de Nicolaus von Zinzendorf (1700-1760) na Alemanha ou de Nils Hauge (1771-1824) na Noruega.

Com o fim da era da cristandade, o modelo de igreja territorial e paroquial se desintegra e entra em colapso. Num meio urbano pluralista, já não é mais sectário que cristãos assinem o seu nome e se reúnam entre si, em alguma casa, para orar, ler, batizar receber o sacramento e fazer outras obras cristãs. (43) Nesse contexto, a função primordial da liderança eclesiástica não é mais exercer um cargo, mas, sim, facilitar o exercício da multiformidade de dons que o Evangelho faz brotar em meio à comunidade. Esta tem a liberdade bem como a responsabilidade de apoiar e avaliar a iniciativas que propiciem a divulgação do Evangelho e a edificação da Igreja no seu contexto. Da adoração ao Senhor ela recebe os parâmetros para perceber se obreiros são servos ou se exercem domínio.

A dupla experiência de sofrimento

Concluímos essa tentativa de orientar-nos diante de algumas das encruzilhadas que encontramos como Igreja, consultando o mapa da Bíblia com auxílio da confissão luterana. Ainda que nos tenhamos localizado no mapa, carecemos discernir o norte no próprio Senhor Jesus, para não avançar na direção errada, retornando à desorientação inicial.

Quem descobre a trilha estreita do Reino, depois de vagar perdido no escuro e de ter-se metido em muitos becos sem saída, experimenta libertação e acolhida; é resgatado do sofrimento que ele próprio e outros lhe causaram. Mesmo que veja apenas onde colocar o próximo passo, sabe que pisará em chão firme.

Mas, ao andar com Jesus, tanto o cristão como a comunidade cristã continuam a experimentar sofrimento nessa caminhada. No entanto, agora ele adquire outro caráter, pois leva a carga dos outros. Isto vale para todas as dimensões da vida, inclusive para o ministério e para a reflexão teológica. Se não estivermos preparados para suportar sofrimento pelos outros, tanto por quem está dentro da Igreja como pelos que estão fora dela, carecemos fixar nosso olhar naquele que sofreu por nós. Ele nos sustentará e preservará no testemunho da sua verdade. Amém.

1Palestra proferida na Semana Acadêmica na Escola Superior de Teologia (São Leopoldo, RS) em 10/05/2001 e revisada para o Encontro de Obreiros do Movimento Encontrão (Rodeio 12, SC) em 14/08/2001.

2Hino da Ação Missionária do Sínodo do Mato Grosso

3Encontro Publicações, Curitiba, 2000

4Ano 35, No 2, São Leopoldo, RS, 1995, p. 124-132

5CONSTITUIÇÃO da IECLB, Artigo 5o.

6 O Pastor Presidente inclui, ainda, o Catecismo Maior de Lutero – Carta IECLB nº 38557/01, sem data – mas este, lamentavelmente, não consta no artigo 5º da Constituição.

6Apologie, M93, in Die Bekenntnisschriften der ev.luth Kirche, p.166